Segredos de Lisboa. De "palhacete" mal-amado a hotel de charme

Há 100 anos a Câmara apontava-o como um exemplo de "detestável mau gosto". Atualmente o Palacete Chafariz d'El Rei está em processo de classificação como imóvel de interesse municipal
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Chamavam-lhe "o palhacete". A Câmara de Lisboa chegou a defender a demolição do "extravagante chalet" que "ofendia a estética" da cidade. Foi há exatamente cem anos. O Palacete Chafariz d"el Rei sobreviveu então à chacota popular e à ira da autarquia. Há pouco mais de uma década quase soçobrava ao abandono. Sobreviveu novamente. Hoje, numa versão arquitetónica da história do patinho feio, está transformado num hotel de charme onde uma suite pode custar 420 euros por noite. Está em processo de classificação como imóvel de interesse municipal. E virou atração turística.

Na Rua do Cais de Santarém, na zona ribeirinha de Alfama, uma fila de turistas empunha as câmaras fotográficas. À frente têm aquele que terá sido o primeiro chafariz público de Lisboa (embora a atual fachada remonte ao século XIX), o Chafariz d"El Rei, monumento de interesse público desde 2012. Dá- se o caso de que não é para o centenário chafariz que os turistas apontam, mas para o estranho edifício de pedra colorida que se ergue acima, empoleirado no monumento, e que mais destaque ganha pela enorme buganvília que cobre o terraço.

Para entrar no Palacete Chafariz d"El Rei é preciso dar a volta ao quarteirão, entrar pela Travessa de São João da Praça, bater à porta fechada do que é agora um hotel. Lá dentro, a mistura de estilos faz o exterior parecer uma coisa sóbria. Há a sala neoclássica, as portas em ferradura típicas da arte nova ao lado de elementos rococó, a sala neoárabe, mas com elementos asiáticos, há uma sala de fresco e um mirante no topo do edifício com uma impressionante vista de 360 graus sobre Lisboa.

Um exemplo de "detestável mau gosto"

João António dos Santos emigrou para o Brasil e voltou de lá muito rico, no final do século XIX. E quis que Lisboa inteira soubesse disso. A construção do palacete remonta a 1907, mas há de prolongar-se por mais de uma década, com o proprietário envolvido numa guerra sem quartel com a câmara. A razão não era de somenos: o palacete estava a ser construído literalmente em cima do Chafariz. A base da contenda remontava a 1517, ano em que um alvará de D. Manuel I outorgava o direito de construção sobre o chafariz a um antigo proprietário. Uma invocação com 400 anos que a autarquia estava longe de aceitar.

A oposição não demoveu João António dos Santos, bem pelo contrário. Em 1916/17 propõe à Câmara nada menos que uma alteração ao próprio Chafariz: pede a demolição da "platibanda de cantaria que remata a frontaria". Da autarquia leva um não acompanhado de uma declaração de ódio da Comissão de Estética, com o parecer a terminar fazendo "votos para que venha a desaparecer o extravagante chalet que o requerente mandou construir sem licença e com a oposição da Câmara, por cima do Chafariz e que constitui uma das notas de mais detestável mau gosto que ofende a estética de Lisboa" (declaração que consta do processo de obra do edifício).

João António dos Santos construiu o seu palacete, mas acabou por não viver muito tempo nele. Depois de ter vencido a câmara deparou-se com outra força poderosa que também não gostava da casa - a respetiva mulher. Acabou por vender o imóvel na década de 1930. Depois disso, o palacete fica como residência familiar até aos anos 1980, altura em que é alugado a despachantes, para escritórios.

É neste ponto (muitos anos depois) que entra na história o madrileno Emílio Castillejos. A viver em Lisboa, em 2007 passa à frente do Chafariz d"El Rei e tem a mesma reação que a generalidade das pessoas: "O que é isto?!" Algum tempo depois soube que os proprietários queriam vender o edifício, fez uma visita e comprou. "Foi paixão à primeira vista", diz ao DN. Emílio comprou o palacete para morar e foi isso que fez, mas depois repensou: "Era uma loucura ter uma casa destas para mim e dois cães." Daí e da constatação de que a casa tinha grandes custos de manutenção nasce a ideia, primeiro de fazer alojamento turístico, depois de fazer suites. Depressa percebeu que o conceito vingava: "Estávamos em 2010, tínhamos preços altos, mas mesmo assim tínhamos muita procura. Sobretudo de russos, americanos" - uma tendência que se mantém. Com 43 anos, Emílio dedica-se à compra e recuperação de casas, que depois vende. "Mas isso é negócio, isto é diferente." Também é colecionador de arte, uma atividade a que dedicou muito do seu tempo nos dois anos que demoraram as obras de restauro do palacete.

De Florença ao Feijó

Rui Teixeira é o diretor do hotel, é ele quem faz a visita guiada pelo edifício de "arte nova brasileira" - um estilo eclético com elementos de época que podem ser encontrados, por exemplo, no Palácio de Monserrate, em Sintra. Quem entra no palacete tem diante de si uma galeria com um altíssimo pé-direito, coberta por uma claraboia de vitrais com 690 vidros, que ao fundo dá cesso ao jardim que se vê do exterior. À esquerda está o salão de chá (que era a sala de baile), logo a seguir uma salinha em estilo neoárabe (a antiga sala de fumo). Do lado oposto está a biblioteca e a antiga sala de jantar, que é agora dos pequenos-almoços . Uma escada em caracol dá acesso aos pisos superiores do edifício (que no total tem cinco andares), onde ficam as seis suites. Todos os elementos arquitetónicos, nas paredes, os vitrais, os tetos, as portas, foram mantidos como no original. Para isso foi preciso um misto de colecionador e de detetive. Num caso, foi preciso usar folhas de ouro para decalque que "só se vendem em Florença". Noutro, o raro vidro grivé (que faz um efeito como que estalado) de uma das portas foi encontrado na vidreira central do Feijó. Rui Teixeira conta a história: "Há 72 anos alguém tinha feito uma encomenda à vidreira que nunca foi levantada". Até hoje mantém a suspeita de que o pedido tenha tido origem... no palacete.

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