Caminhar pela cidade amuralhada de Cartagena das Índias, com as suas coloridas casas coloniais de imponentes varandas de madeira, é como folhear os livros do escritor colombiano Gabriel García Márquez. Foi ali, sob as arcadas do Portal de los Dulces (na ficção o Portal dos Escrivães), onde ainda hoje se vendem bolos de gergelim ou piononos, que Fermina Daza decidiu que não ia casar com Florentino Ariza, adiando esse amor por 51 anos, nove meses e quatro dias. Mas para lá de ser cenário do livro O Amor nos Tempos de Cólera, a "Heróica" é também o ponto de partida para conhecer uma parte da vida do Prémio Nobel da Literatura de 1982..Um pouco dessa Cartagena de Gabo, como nem nos roteiros turísticos se conhece, foi mostrada por ocasião do Hay Festival. Os guias foram o jornalista e historiador Gustavo Tatis Guerra e um dos 11 irmãos do escritor, Jaime García Márquez (com um sorriso igual ao de Gabo), que se definiu como o "racionalista da família" e da voz de quem se ouviram inúmeras histórias durante as três horas de percurso sob um sol abrasador e o calor húmido das Caraíbas que nem os ventos alísios conseguem disfarçar. .A rota começa junto à casa do pintor Alejandro Obregón, na Plaza de la Artilleria, que era ponto de paragem obrigatório para Gabito (como lhe chama o irmão). O artista "preparava a mesa do almoço de tal forma que parecia uma natureza morta", lembra Jaime. Mais à frente, impõe-se a enorme porta de madeira da mansão do marquês de Valdehoyos, o maior traficante de escravos da região, que García Márquez apelida de marquês de Casalduero. Esta é a casa da mãe do doutor Juvenal Urbino, marido de Fermina..A alguns quarteirões de distância fica o Parque dos Evangelhos (na realidade o Parque Fernández de Madrid), onde Florentino "a partir das sete da manhã" via Fermina passar sentado "no banco menos visível" e "fingindo ler um livro de versos à sombra das amendoeiras". Frente ao parque estão as paredes brancas da casa de Fermina Daza, conhecida como a "casa de Don Benito", que é uma das mais antigas da cidade. "Foi aqui que Gabito me disse que tinha mudado o nome à sua personagem principal. Chamava-se Josefa Cárcamo, mas eu tinha-lhe dito que não gostava", recorda Jaime García Márquez, que costumava passear com o irmão por Cartagena para encontrar os locais onde decorria o seu próximo romance. .Mais à frente, fica a Rua do Candeeiro, estreita e encurvada, onde Florentino conheceu Leona Cassiani, "que foi a verdadeira mulher da sua vida, ainda que nem ele nem ela jamais o soubessem, ou jamais tivessem feito amor", escreveu Gabo. Logo depois, junto à Porta do Relógio, ex-libris da cidade, fica a casa do fotógrafo Jeremias Saint-Amour, cujo suicídio em O Amor nos Tempos de Cólera é uma cópia do de D. Emilio, descrito na autobiografia Viver para contá-la como tendo ocorrido em Aracataca, onde o escritor nasceu. .E se García Márquez se apoia na realidade para fazer ficção - o livro agora adaptado ao cinema parte da história dos amores proibidos dos seus pais - há vezes em que a ficção irrompe na realidade. Quando em 1948 chegou a Cartagena - fugido do Bogotazo que deixara a capital em estado de sítio, com a morte do líder popular Jorge Gaitán - Gabo precisava de trabalho. Então com 21 anos, é recebido de braços abertos por Clemente Manuel Zabala, chefe de redacção do recém criado jornal liberal El Universal, que tinha lido alguns contos seus. .O grupo de jornalistas então formado era tão unido que, numa altura em que não há notícias, inventam um poeta, César Guerra Váldez, que "iria visitar" Cartagena. Entre eles, fazem a recensão do livro, analisam os poemas, fazem uma entrevista... "E como é que explicaram quando não veio?", questiona alguém do grupo de 40 pessoas que participa na visita guiada. "O poeta ficou doente e teve de cancelar", lembra Jaime, frente ao número 3-81 da rua de San Juan de Dios, antiga sede do El Universal, onde Gabo deu os primeiros passos no jornalismo, com a sua coluna "Punto y Aparte" e onde chegou a dormir, "em cima dos despachos internacionais". Na mesma rua fica a sede da Fundação para um Novo Jornalismo Ibero-americano, fundada pelo escritor em 1994 e presidida por Jaime..A rota termina junto ao antigo convento de Santa Clara, transformado num hotel de luxo, que serve de cenário a outro dos livros do autor. Foi aí que o sacerdote Cayetano Delaura se apaixonou pela jovem Sierva María de Todos los Ángeles quando a foi exorcizar, em Do Amor e Outros Demónios. Em cada rua, em cada esquina da "Heróica", está um pedaço da história de um dos maiores escritores latino-americanos.|