Secreto, discreto e poderoso

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As sociedades secretas são secretas por alguma razão.

Fundadas em códigos próprios e rígidos, nomeadamente de hierarquia e lealdade, são fechadas sobre si mesmas, mas com ramificações para o exterior, nas mais variadas áreas da sociedade.

E da política. E dos negócios. E dos negócios feitos por políticos.

E esta é que é a questão.

Não quero saber de triângulos, sinos, aventais e outros rituais, desde que o que se combina, lá dentro, à porta fechada e com "discrição", não acabe por, depois, afetar as decisões que vão ter impacto direto na vida de um povo inteiro.

A tal lealdade e a tal hierarquia sugerem obediência e devoção. Proteção inter pares. Escolhas pessoais, designações, indicações, recomendações, nomeações. Como diria o povo que fica fora da sociedade, "cunhas e jeitinhos".

Abrir portas aos companheiros para chegarem a lugares de decisão.

Um círculo de influência que se monta, discretamente, secretamente, mas que é poderoso e cresce de forma exponencial. Que, por ser secreto, discreto e poderoso, nunca sabemos onde está, até onde vai e o que controla.

E nas tais reuniões, à porta fechada, com dever de reserva, sigilo e cumplicidade, os "secretos discretos" jogam ao monopólio, decidindo quem vai ser colocado onde e com que objetivo.

Por mais nobre que seja a ideia, a crença, o sentido do devir e as motivações - até, admito, patrióticas e bem-intencionadas -, a casta do avental tudo sabe, tudo comanda, tudo influencia, tudo controla e tudo vigia. E nós, todos, tolos, nada sabemos, nada dizemos, nada fazemos. Apenas suspeitamos - e só às vezes, poucas, temos conhecimento. Acontece quando os secretos se esquecem de ser "discretos" ou então se aparece a prima de uma amiga do namorado da nossa irmã que conhece alguém que conhece outro alguém que sabe de certeza que sim, "que é".

Até nós, os tolos, por ser tão secreto, nem acabamos a frase baixamos imediatamente a voz - lá está, nunca se sabe quem é, pode estar ali, ao nosso lado - quando falamos disso:

- Ai ele é...? Tens a certeza?

E depois de sabermos que é, tudo deixa de ser discreto e secreto. E conseguimos encontrar respostas para perguntas que estavam em aberto, perceber melhor a causa de algumas coisas, resolver enigmas que nos intrigavam.

No confronto, sempre discutível, entre liberdades individuais e coletivas, entre reserva da vida privada e transparência da vida pública, entre "secreto" e "aberto", entre discreto e ruidoso, lembro-me sempre da Dona Fernanda, a minha poderosa professora da escola primária.
A nossa liberdade individual acaba onde começa a liberdade dos outros. Confesso que aos 6 anos não percebia muito bem o que ela, solenemente, queria dizer com esta declaração que repetia vezes de mais.

Mais tarde, consegui materializar aquele conceito, mil vezes dito com vigor e certeza.

Voltando ao princípio, só é secreto o que está escondido, o que não é para se saber, o que se procura ocultar, esconder, disfarçar, fingir que não existe. É a mesma lógica dos "documentos secretos", dos "ficheiros secretos" e dos "arquivos secretos".

E, até esses, passado um tempo, mais ou menos longo, são "abertos".

Temos de ser capazes de construir uma sociedade mais aberta, mais livre, mais plural, mais transparente, mais clara. E, assim, mais informada, mais democrática, mais madura e, portanto, mais exigente, mais fiscalizadora, mais interventiva e mais justa.

A discrição é, para mim, uma qualidade e não um defeito.

Mas discrição, que aprecio, não é sinónimo de secretismo. E neste baile das palavras com que nos tentam confundir, e enganar, convém ter a noção da diferença que vai entre ser "secreto" e ser "discreto".

E se o "segredo é a alma do negócio", também é, nestes casos, a alma do poder, da influência, dos interesses atrás do pano, como se fôssemos todos apenas espectadores de um teatro de sombras.

A mim, que não sei cozinhar, os aventais não me fazem qualquer falta. Mas, já agora, gostava de saber quem são os cinco mil, números redondos, que os utilizam sem ser para estar diante do fogão.

Jornalista

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