Sean Connery na companhia de Marnie
Na nossa mitologia cultural, os filmes de James Bond começaram por ser um espelho ambíguo, mais irónico que dramático, da Guerra Fria. Sean Connery foi o gentleman que nos ajudou a lidar com a irracionalidade de um mundo dividido por muitos muros, uns físicos, outros simbólicos. Por essa altura, surgiu numa das derivações mais insólitas da sua carreira, sob a direção de Alfred Hitchcock: Marnie (1964), lançado entre 007, Ordem para Matar (1963) e 007 contra Goldfinger (1964), é um filme radical e perturbante, eternamente mal-amado, mesmo por muitos fãs do universo hitchcockiano.
Marnie Rutland, interpretada por Tippi Hedren (que, um ano antes, Hitchcock dirigira em Os Pássaros), é uma mulher assombrada por uma pesada herança afetiva e sexual. Em boa verdade, ela existe como uma das mais radicais expressões do misto de fascínio e distanciamento com que Hitchcock encenou o universo feminino. À sua maneira, ele foi, afinal, um "freudiano" relutante e talvez se possa dizer que, na sua filmografia, Tippie Hedren encarna a crueza realista, intocável, daquilo que atrizes como Joan Fontaine ou Ingrid Bergman tinham representado ainda de acordo com os cânones clássicos do romantismo cinematográfico.
O que, creio, é francamente mais esquecido, ou até menosprezado, é o facto de, face a Marnie, Sean Connery interpretar um Mark Rutland que corresponde a uma trágica encarnação do masculino, em tudo e por tudo exterior aos propósitos do seu agente secreto 007. De facto, não há nele nada de heroico, ainda menos de redentor. É mesmo uma personagem de uma frieza que, de algum modo, repele a eventual simpatia com que o espectador o descobre. Aliás, simplificando, podemos dizer que Marnie/Mark definem um par que condensa o mais poderoso fantasma erótico do cinema de Hitchcock. A saber: as relações sexuais entre homem e mulher exprimem, não a cumplicidade de duas identidades, mas a mútua e radical incompreensão dos respetivos desejos.
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Não é este o contexto para relançar uma possível reflexão sobre a visão do mundo de Hitchcock. Ainda assim, creio que vale a pena sublinhar e enaltecer a espantosa capacidade de Sean Connery "encaixar" nessa dramaturgia, totalmente alheia à mitologia "bondiana" que, na época, ele encarnava com a sofisticação e o sucesso que todas as histórias do cinema registam.
Através das agitadas memórias do começo da sua carreira, incluindo alguns períodos de escassos meios de sobrevivência, sabemos que não foi indiferente a sua passagem pelo teatro. E talvez não seja abusivo considerar que desse tempo lhe ficou um particular gosto da teatralidade. A saber: a capacidade de se enredar nas sombras das suas personagens sem nunca esconder a estratégia de fingimento que o seu labor implica. Como diria Sir Laurence Olivier: trata-se apenas de representar...
Recordo, assim, mais ou menos ao acaso, a sua contundência dramática em A Colina Maldita (1965), de Sidney Lumet, ou a pose de aventureiro futurista em Zardoz (1974), de John Boorman; a recriação pós-moderna do mito de Robin dos Bosques em A Flecha e a Rosa (1976), de Richard Lester (contracenando com Audrey Hepburn, hélas!); ou ainda os papéis emblemáticos em Os Intocáveis (1987), de Brian De Palma, e Indiana Jones e a Última Cruzada (1989), de Steven Spielberg (quem mais poderia interpretar o pai de Harrison Ford?). E penso ainda no belíssimo Descobrir Forrester (2000), de Gus Van Sant, em que o seu próprio envelhecimento serve, de modo natural e desdramatizado, a definição da personagem de um escritor eremita.
De todas estas memórias, fica a sensação cristalina de que Sean Connery se apresenta como tanto mais enigmático quanto mais as suas composições trabalham sobre os muitos contrastes comportamentais de que somos feitos. Creio que é também isso que nos torna cúmplices de alguns atores: não a acumulação de gostos na conta do Instagram, mas o facto de a sua nudez dramática reforçar o mistério da arte de representar. E, neste caso, do próprio cinema.