Sean Connery na companhia de Marnie

O ator celebrizado pelas aventuras do agente secreto 007 foi também um intérprete dos muitos contrastes do comportamento humano. Afinal de contas, Sean Connery trabalhou sob a direção de Alfred Hitchcock, Sidney Lumet, John Boorman, Brian De Palma, Steven Spielberg...
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Na nossa mitologia cultural, os filmes de James Bond começaram por ser um espelho ambíguo, mais irónico que dramático, da Guerra Fria. Sean Connery foi o gentleman que nos ajudou a lidar com a irracionalidade de um mundo dividido por muitos muros, uns físicos, outros simbólicos. Por essa altura, surgiu numa das derivações mais insólitas da sua carreira, sob a direção de Alfred Hitchcock: Marnie (1964), lançado entre 007, Ordem para Matar (1963) e 007 contra Goldfinger (1964), é um filme radical e perturbante, eternamente mal-amado, mesmo por muitos fãs do universo hitchcockiano.

Marnie Rutland, interpretada por Tippi Hedren (que, um ano antes, Hitchcock dirigira em Os Pássaros), é uma mulher assombrada por uma pesada herança afetiva e sexual. Em boa verdade, ela existe como uma das mais radicais expressões do misto de fascínio e distanciamento com que Hitchcock encenou o universo feminino. À sua maneira, ele foi, afinal, um "freudiano" relutante e talvez se possa dizer que, na sua filmografia, Tippie Hedren encarna a crueza realista, intocável, daquilo que atrizes como Joan Fontaine ou Ingrid Bergman tinham representado ainda de acordo com os cânones clássicos do romantismo cinematográfico.

O que, creio, é francamente mais esquecido, ou até menosprezado, é o facto de, face a Marnie, Sean Connery interpretar um Mark Rutland que corresponde a uma trágica encarnação do masculino, em tudo e por tudo exterior aos propósitos do seu agente secreto 007. De facto, não há nele nada de heroico, ainda menos de redentor. É mesmo uma personagem de uma frieza que, de algum modo, repele a eventual simpatia com que o espectador o descobre. Aliás, simplificando, podemos dizer que Marnie/Mark definem um par que condensa o mais poderoso fantasma erótico do cinema de Hitchcock. A saber: as relações sexuais entre homem e mulher exprimem, não a cumplicidade de duas identidades, mas a mútua e radical incompreensão dos respetivos desejos.

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Não é este o contexto para relançar uma possível reflexão sobre a visão do mundo de Hitchcock. Ainda assim, creio que vale a pena sublinhar e enaltecer a espantosa capacidade de Sean Connery "encaixar" nessa dramaturgia, totalmente alheia à mitologia "bondiana" que, na época, ele encarnava com a sofisticação e o sucesso que todas as histórias do cinema registam.

Através das agitadas memórias do começo da sua carreira, incluindo alguns períodos de escassos meios de sobrevivência, sabemos que não foi indiferente a sua passagem pelo teatro. E talvez não seja abusivo considerar que desse tempo lhe ficou um particular gosto da teatralidade. A saber: a capacidade de se enredar nas sombras das suas personagens sem nunca esconder a estratégia de fingimento que o seu labor implica. Como diria Sir Laurence Olivier: trata-se apenas de representar...

Recordo, assim, mais ou menos ao acaso, a sua contundência dramática em A Colina Maldita (1965), de Sidney Lumet, ou a pose de aventureiro futurista em Zardoz (1974), de John Boorman; a recriação pós-moderna do mito de Robin dos Bosques em A Flecha e a Rosa (1976), de Richard Lester (contracenando com Audrey Hepburn, hélas!); ou ainda os papéis emblemáticos em Os Intocáveis (1987), de Brian De Palma, e Indiana Jones e a Última Cruzada (1989), de Steven Spielberg (quem mais poderia interpretar o pai de Harrison Ford?). E penso ainda no belíssimo Descobrir Forrester (2000), de Gus Van Sant, em que o seu próprio envelhecimento serve, de modo natural e desdramatizado, a definição da personagem de um escritor eremita.

De todas estas memórias, fica a sensação cristalina de que Sean Connery se apresenta como tanto mais enigmático quanto mais as suas composições trabalham sobre os muitos contrastes comportamentais de que somos feitos. Creio que é também isso que nos torna cúmplices de alguns atores: não a acumulação de gostos na conta do Instagram, mas o facto de a sua nudez dramática reforçar o mistério da arte de representar. E, neste caso, do próprio cinema.

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