Seagull levanta voo nesta madrugada e leva Setúbal até aos loucos anos 80
O que fariam 87 cavalos parados em plena estrada de acesso às praias da Arrábida numa noite de verão da década de 80? A pergunta era feita apenas por quem não conhecia as arrojadas festas temáticas do Seagull às quartas-feiras. Já para os habitués da discoteca que marcou várias gerações em Setúbal, a presença dos animais, que obrigou mesmo ao corte da via pela GNR, era algo "perfeitamente normal". O tema da noite era o cavalo e quem quisesse entrar tinha de se apresentar montado num equino. Não havia exceções. Nem para amigos.
"Se deixássemos entrar alguém fora do tema, íamos abrir precedentes e a piada acabava. As festas temáticas eram uma tradição forte da casa", explica Alfredo Martins, o dono da mítica discoteca entre as praias de Galapos e Figueirinha. E Carlos Manuel, o antigo craque de Benfica e Sporting, que o diga. Teve de rasgar a roupa para entrar na festa do "máximo traga o mínimo". "Era meu amigo e um belíssimo cliente. Chamou-me à porta, mas eu não podia fazer nada. Perguntou-me se podia entrar rasgando a camisa e as calças e respondi que sim. Rasgou mesmo e entrou", conta. O critério era igualmente apertado para festas tropicais, do lenço, do branco...
Este e um rol de outros episódios que desfilaram ao longo de duas décadas pela célebre discoteca construída na praia, em plena encosta da Arrábida, serão recordados neste sábado durante uma festa à beira do Sado, no cais três do Porto de Setúbal, com os DJ António Patronilho e Mancha, que trabalharam no Seagull. Os bilhetes estão à venda por 20 euros, garantindo o acesso a esta espécie de regresso ao passado, onde voltam a ser ouvidas as músicas dos anos 80 e 90. O momento alto está guardado para quando tocar o "hino" da casa, da Karla With, The Hooters, que nunca faltava nas loucas noites do Seagull, antes da discoteca ter sido destruída por uma explosão de gás, na fatídica segunda-feira de 19 de novembro de 1998. Era o fim.
Alfredo Martins esteve nove anos sem voltar à Arrábida. E ainda hoje tem de encher o peito de ar para recordar alguns episódios. "Era a menina dos meus olhos", justifica, revelando já ter sido várias vezes convidado para festas ao pôr do Sol na plataforma que resta do velho Seagull, mas ainda não teve coragem de ir. "Há dezenas de pessoas que continuam a ir para lá. Descem a escadaria e vão curtir o sunset com comida e bebida. Mas eu ainda não aguento isso, porque fiquei muito afetado com a tragédia", assume o empresário.
Antes de receber a discoteca da moda na região, o edifício era a casa de férias do arquiteto Eduardo Anahory. Chamou-lhe "aiola", mas passou a Seagull já pela mão de um grupo de amigos. Tinha apenas 70 metros quadrados e passava música durante a madrugada. Foi em 1980 que este grupo decidiu "despachar" a discoteca. Alfredo Martins, até então dono de um bar, realizou o seu sonho e comprou o edifício. 800 contos. Deitou mãos à obra e conseguiu a licença para ampliar o espaço para 190 metros quadrados. A discoteca nunca parou enquanto as obras decorreram. Vinha gente de todo o país, mais e menos famosos. Pais e filhos.
"Houve clientes que choraram no último sábado. Diziam que era uma pena, que nunca mais seria a mesma coisa, mas enganaram-se", diz o empresário, alegando que o melhor estava para vir. Nessa noite, Alfredo permitiu que os clientes partissem a discoteca e levassem tudo o que quisessem.
"Quando reabrimos tínhamos um restaurante por baixo da discoteca e um cais onde os barcos atracavam para as pessoas irem jantar. Passavam ali a noite, com uma varanda linda sobre o mar. Imagine o que era este glamour naquela época", diz, contabilizando na altura cerca de dois mil clientes por fim de semana.
Até na escolha da música o Seagull era diferente, segundo o DJ Mancha, que trabalhou três anos na discoteca. Muito por culpa da "teimosia" de José Gatto (era mesmo o seu verdadeiro nome), considerado o mestre dos DJ de Setúbal. Já deixou o mundo dos vivos, mas durante mais de uma década foi ele que fez a seleção musical. "Ia a Inglaterra buscar música que ainda não existia em Portugal. Eram coisas menos comerciais e as pessoas nem gostavam logo daquilo. Mas depois começavam a gostar e era um sucesso", conta ao DN, admitindo que a seleção continuou a ser rigorosa até aos seus dias na cabine, já na reta final do Seagull. "Mas já tive a vida mais facilitada, porque a música chegava mais cedo a Portugal", diz.
Ainda assim, para este sábado, já tem bem planeado o que vai fazer para animar a noite em mais uma invocação do saudoso Seagull, depois da primeira festa ter tido lugar em 2010, juntando cerca de cinco mil pessoas em Troia.
"Procuramos aumentar a qualidade todos os anos. Isto é uma festa para Setúbal, que tem sempre casa cheia e que permite recordar um ícone nacional", justifica Pedro Gaiveo em nome da organização, admitindo que desta vez é bem possível que se juntem três gerações a dançar a mesma música: avós, filhos e netos. "Eu pertenço à geração dos 40 anos e apanhei a fase mais avançada da discoteca, mas o Seagull ainda foi frequentado pela geração que hoje tem mais de 60. Ou seja, já com netos em idade de irem à festa. É mais um motivo de emoção para festejar em família", resume.