"Não se pode morrer sem se ver Veneza", escreveu um tio meu num postal para casa, há muitos anos, em embriaguez total de Sereníssima. As circunstâncias da vida acabariam por me dar, a dada altura, o grato encargo de ter de ir regularmente até lá, o que, sem jamais me ter permitido decifrar a cidade e o seu enigma (coisa de que nem os próprios venezianos se podem orgulhar), me aperceber, horrorizado, do ritmo em que a sua degradação tem vindo a ocorrer..Até pelas características da sua implantação, Veneza degrada-se praticamente desde que foi fundada (e aí reside, aliás, um dos seus maiores encantos). O que tem acontecido nos últimos tempos, porém, tem tal envergadura e substância que faz pensar que, antes de morrermos nós sem ver Veneza, morrerá Veneza diante dos nossos olhos. É possível..O arqueólogo e historiador de arte Salvatore Settis escreveu um livrinho aterrador, a que deu justamente o título Se Venezia Muore (para quem preferir, existe tradução inglesa, If Venice Dies, da New Vessel Press, 2016, ou castelhana, Si Venecia Muere, da Turner, 2020), e o que nele se conta é. no geral, conhecido por quem esteja atento às notícias. E desde a data da publicação original, em 2014, até ao presente, o que de mais recente se soube só veio confirmar, para pior, as mais negras previsões do autor..Na abertura do livro, Settis diz-nos que há três formas de uma cidade morrer: quando é destruída por um inimigo, como aconteceu com Cartago, arrasada por Roma no ano 146 antes de Cristo; quando é ocupada e colonizada à força por um invasor estrangeiro que dela expulsa os seus habitantes e os seus deuses, como sucedeu a Tenochtitlán, capital dos astecas, que os conquistadores espanhóis devastaram em 1521 para, sobre as suas ruínas, edificarem a Cidade do México; finalmente, quando os seus moradores perdem a consciência de quem são, esquecem-se da sua identidade e memória, tornando-se estrangeiros de si próprios, e, sem se aperceberem-se, convertem-se nos piores inimigos da sua cidade, piores do que todos os exércitos que a queiram invadir ou colonizar..O caso de Atenas é ilustrativo, pois, ao contrário do que tendemos a pensar, após o passado glorioso de Péricles, não mergulhou num sono de milénios para despertar, intacta e alvíssima, logo a seguir à guerra da independência, no início do século XIX, e ser saqueada pelos ingleses. Ao invés, já no século XII, os estrangeiros ficavam impressionados com a ignorância dos gregos sobre o seu próprio passado. Durante a Idade Média, o Partenon foi convertido numa igreja, com incenso e ritos e ícones e muitas pinturas religiosas no seu interior. Na sequência da Quarta Cruzada, em 1204, tornou-se uma catedral católica e foi sucessivamente pilhado por venezianos e florentinos, sem que os atenienses, como nota Salvatore Settis, tenham feito o que quer que fosse para se opor ao saque, ou sequer para lembrar o passado glorioso do templo mandado construir por Péricles..Em 1456, quando Atenas foi conquistada pelos gregos otomanos, o Partenon foi convertido numa mesquita, e até a cidade mudou de nome. Transformada num povoado de algumas cabanas dispersas pelas ruínas, com a população reduzida a uns escassos milhares de almas, Atenas perdeu a memória e a dignidade e, num longo processo que remontou a tempos bem mais antigos, quem quis buscar os traços da sua identidade já não os encontrou lá, tendo de os procurar muito longe, em Constantinopla, em Moscovo, em algumas cidades do norte de Itália. Atenas já não estava em Atenas..Não admira, pois, que ninguém, a começar pelos seus habitantes, se tenha erguido para a defender quando, durante o Ducado de Atenas, a família Acciaioli decidiu, em 1403, converter a Acrópole numa fortaleza, nem quando os otomanos transformaram o Partenon num gigantesco paiol de pólvora, nem quando, em 1687, o general veneziano Francesco Morosini mandou disparar os canhões dos seus navios contra o monumento, o que fez desmoronar o telhado, até aí miraculosamente intacto, e destruiu significativamente a fachada. Ainda hoje é possível ver mais de 700 vestígios dos tiros de canhão que desfiguraram os mármores de Fídias e de Péricles..Nos nossos dias, os navios que destroem as cidades, ou a sua alma, já não pertencem às marinhas de guerra, mas às grandes companhias de cruzeiros. Para termos uma noção, em 2018, o ano de que disponho de dados, esses navios geraram em Portugal 2,9 milhões de toneladas de dióxido de carbono, superiores à totalidade das emissões dos automóveis que circulam diariamente nas cidades de Lisboa, Porto, Cascais, Vila Nova de Gaia, Loures, Braga e Matosinhos..No ano anterior, 2017, Lisboa foi eleita o porto marítimo mais concorrido a nível europeu, com a visita de 115 navios de cruzeiro, que permaneceram no cais durante 7953 horas (Barcelona e Veneza ocupam os lugares cimeiros nesta lista negra, Lisboa está em terceiro lugar). Chegaram depois boas notícias, já de Março deste ano, segundo as quais a Assembleia Municipal de Lisboa se propunha limitar a actividade dos cruzeiros na capital. Mas, então, porque construíram um mastodôntico terminal de cruzeiros pouco tempo antes, ademais numa localização desastrada? Que sentido faz, sabendo-se o que se sabe, edificar um terminal de cruzeiros quando todas as cidades europeias estão a limitar essa actividade?.Veneza é das cidades mais flageladas por esta praga. Em Maio de 2017, cerca de 20 mil venezianos participaram num referendo não oficial no qual 99% dos votantes se pronunciaram a favor de uma redução drástica dos cruzeiros, que utilizam um combustível que contém cerca de cem vezes mais enxofre do que o emitido pelos camiões a diesel. Segundo alguns dados da Comissão Europeia, a poluição atmosférica da navegação internacional causa aproximadamente 50 mil mortes prematuras por ano na Europa. Leram bem, 50 mil mortes, tão preocupados andamos por causa da pandemia..Além da poluição atmosférica, o deslocamento nos navios de cruzeiro é aproximadamente 50% da sua tonelagem bruta, o que significa que um navio de cem mil toneladas arrasta consigo 50 milhões de litros de água, um movimento arrasador para as fundações velhíssimas dos edifícios, palácios e ruas de Veneza. O exemplo dado é o de um navio de cem mil toneladas, mas, dos 47 navios que serão construídos até 2021, 38 terão muito mais toneladas e, logo, irão corroer muito mais os frágeis alicerces em que repousa a Sereníssima. Para se ter uma ideia, o navio Harmony of the Seas, construído em 2016, pesa 226 963 toneladas e tem 70 metros de altura. Um monstro..Apesar de algumas intervenções do Governo e das autoridades locais, o problema persiste, sem fim à vista. As companhias teimam em não colocar os filtros necessários para diminuir a poluição com enxofre e, pasme-se, opõem-se a uma das alternativas propostas, que passaria pela construção de um novo terminal de cruzeiros na entrada do Lido, que liga o Adriático à Lagoa. Argumentam que, se esse projecto fosse avante, os seus passageiros perderiam a possibilidade de verem Veneza a bordo do navio, com uma panorâmica privilegiada, dezenas de metros acima as cabeças dos comuns mortais. Vai-se matar uma cidade para que alguns turistas, por alguns anos, possam ter o escasso privilégio de a ver no conforto dos seus camarotes, sem a maçada de terem de descer a terra?.Com a cidade convertida numa Disneylândia, num parque temático que os turistas já nem se dignam a olhar de perto, preferindo contemplá-la do alto dos seus navios, os habitantes escasseiam, quase não existem. Segundo as estatísticas avançadas por Salvatore Settis, Veneza tinha cerca de 174 mil habitantes em 1951, dos quais só restavam 56 mil em 2014. Em Dezembro de 2019, eram apenas 52 mil, e a crise da pandemia certamente irá diminuí-los ainda mais. Em 1950, houve na cidade 1924 nascimentos para 1932 mortos, um saldo negativo, mas à tangente. Em 2000, nasceram 404 bebés, morreram 1508 pessoas. Veneza caminha a passos largos para ter o mesmo destino da Atenas de outrora, despojada de pessoas e das suas memórias. Sem umas e outras, a cidade poderá, com sorte, sobreviver no edificado, nas será uma Veneza-outra, muito diferente da que nos encantou durante séculos..Enquanto isso, e como notou o escritor Antonio Muñoz Molina numa crónica no El País de 18 de Julho passado, pululam réplicas venezianas em várias partes do mundo. As mais conhecidas são as dos casinos, em kitsch feérico. Em Las Vegas, o Venetian Resort Hotel, com oito mil camas, tem, além das múltiplas salas de jogos, uma versão em miniatura da cidade, com canais, gôndolas, o campanário de São Marcos, a Ponte de Rialto. O complexo, pavoroso, foi inaugurado em 1999 por Sophia Loren, a bordo de uma gôndola motorizada (!). Em Macau, quando se fez outra réplica de Veneza, já nem sequer se copiou a cidade original, mas antes a versão existente em Las Vegas, doravante canónica. E na China, no New South China Mall, em Dongguan, a cidade de Veneza surge misturada com pastiches da Roma Antiga, de Paris, de Amesterdão, das pirâmides do Egipto, de uma ilha das Caraíbas...."Veneza, apesar de decadente, é ainda bela - talvez a mais bela de todas as cidades da Europa meridional", escreveu Antero de Quental, ou, melhor, traduziu Antero um texto de Thomas George Bonney, numa versão ilustrada, publicada há um par de anos, em 2015, com introdução e notas de Andrea Ragusa. A cidade não perdeu a beleza - e, menos ainda, a decadência - que fascinava os viajantes do século XIX. Será agora, aliás, o melhor tempo para a apreciar, pois, pela primeira vez em muitos anos, a pandemia teve o efeito virtuoso de afugentar momentaneamente os turistas e os seus males. Quem possa ou tenha coragem de ir, é agora, aproveitai. As ruas estão semidesérticas, os canais vazios, a cidade desvenda-se quase em exclusivo para os que se atrevam a percorrê-la..No passado Outubro, o escritor Colm Tóibín esteve lá uma temporada, e o diário dos seus dias venezianos, surgido nas páginas da London Review of Books de 19 de Novembro, é uma descrição avassaladora dos mistérios da cidade, aos quais Jan Morris, recentemente falecida, e que lá viveu, dedicou também um dos seus mais belos e informativos livros (Veneza, Tinta-da-china, 2009)..Em tempo de pandemia, em que as várias modalidades de confinamento esvaziam impiedosamente os corações das cidades e o seu pulsar, fazendo-as todas parecerem-se com as cenas iniciais de Berlim, Sinfonia de Uma Metrópole, o documentário que Walter Ruttmann dedicou em 1926 à capital do Reich, neste tempo, dizia, Colm Tóibín recorda que Veneza foi cidade de muitas e graves pestes. Não apenas a que vitimou o desafortunado Aschenbach da novela de Thomas Mann, mas todo o cortejo de doenças que a assaltaram ao longo dos séculos, mercê da sua localização lacustre, da sua posição geográfica junto ao Adriático, do facto de ela ter sido, e continuar a ser, um fervilhante entreposto de pessoas e de mercadorias, da sua história pujante e, enfim, e mais decisivamente, da aglomeração densa de gente numa malha urbana apertadíssima, cuja superfície total é equivalente ao dobro do Central Park, de Nova Iorque, não mais..Entre Agosto de 1575 e Fevereiro de 1576, a peste matou 3696 venezianos, cerca de 2% da população. Depois, as coisas iriam piorar. As principais vítimas, como sempre sucede, moravam nos bairros degradados e no gueto dos judeus, sobrepovoado. E, como também sempre sucede, as autoridades levantaram as restrições cedo de mais, por pressão do comércio e das fábricas artesanais. Em resultado disso, a morte regressou em força, fulgurante e arrasadora. O Doge exortou dois médicos a acalmar a população, jurando que os óbitos se deviam à fome, não à pestilência, mas bastaram poucos dias para se concluir que o parecer dos clínicos estava errado. Rapidamente a epidemia galgou os muros dos bairros pobres e ceifou todos à sua passagem, fosse qual fosse a sua condição ou fortuna. As gôndolas e outras embarcações percorriam os canais a toda a brida, transportando consigo médicos e seus ajudantes, barbeiros para as sangrias, jesuítas para a extrema-unção. Nas casas dos que morriam, as portas eram marcadas com uma cruz feita com o próprio sangue das vítimas, para assinalar a gravidade do mal e afugentar curiosos ou intrusos com maus propósitos. Quando terminou, a praga tinha dizimado um quarto da população de Veneza..Tiziano Vecellio encontrava-se lá, presenciou muita coisa. Tinha 86 anos, era célebre e respeitado, conhecera o êxito desde muito novo. Os seus contemporâneos chamavam-lhe "o Sol no meio de pequenas estrelas", expressão tirada do Paraíso, de Dante, que exprimia a admiração que lhe tinham, e à sua arte. Agora, no fim da vida, pressentindo a morte, vendo-a a cada instante nas ruas escuras da cidade, Tiziano dedicava-se a uma obra que, naquele contexto, era prenhe de simbolismo, a Pietà. Desejava que o quadro fosse colocado sobre o seu túmulo, para sempre, pelo que a tela que hoje vemos na Accademia tem o seu quê de testamento ou, se quisermos, de epitáfio. Corresponde ao período mais tardio da sua obra, aquele em que Tiziano concedera a si próprio maior liberdade no traçado das formas e no uso do pincel e das cores. Não admira, pois, que o resultado final se assemelhe a uma pintura impressionista, tanta foi a ousadia do mestre no modo como fez os vultos emergirem da escuridão circundante..Atrás de Maria, e a enquadrar toda a composição, uma edícula ou nicho maneirista rústico, flanqueada por estátuas colocadas em pedestais com cabeças de leão gigantes, um exercício arquitectural em que Tiziano era famoso. A iluminação da cena é dada por seis lamparinas no topo do frontão quebrado e, além de Maria Madalena, que não se sabe se está a chegar ao palco ou a sair dele, espavorida, vemos o que hoje se conclui ser São Jerónimo, prostrado aos pés de Cristo. Dos lados, uma estátua de Moisés e outra da Sibilia Helespôntica (ou do Helesponto, entre a Europa e a Ásia), que, segundo a lenda, terá profetizado a vinda de Cristo à Terra. A atmosfera é de grande inquietude e dramatismo; ao contrário das representações convencionais, Tiziano não retratou Maria em paz, conformada e resignada ante o filho morto. Tudo no quadro transmite, ao invés, uma sensação de escândalo e de revolta, para o que muito contribuiu a postura de Maria Madalena, aos gritos, mas sobretudo a luz, trémula e inconstante, aterradora. É quase um horror movie o que temos diante de nós..O autor morreria antes de o completar, e do trabalho final incumbiu-se Palma Giovane. Possivelmente, terá sido ele a colocar na tela, num ex voto minúsculo, no canto inferior direito, dois homens ajoelhados, rezando a uma Pietà celeste. São o próprio Tiziano e o seu filho Orazio, que morreria um mês depois dele, também vitimado pela peste. O pintor sempre desejara ser enterrado na igreja de Pieve di Cadore, onde fora baptizado, mas acabou por se desentender com os frades locais e decidiu que a sua sepultura seria na basílica franciscana de Santa Maria Gloriosa dei Frari, num lugar onde existia um crucifixo e para onde pintou a Pietà. Contudo, descobriu depois que os padres não tinham a mínima intenção de tirar o crucifixo do sítio para colocar o seu quadro, pelo que, furioso, voltou a querer ser sepultado em Pieve di Cadore. Conseguiu até que o núncio papal de Veneza ordenasse aos franciscanos que estes lhe devolvessem a pintura amada, o que fizeram..Trouxe a tela para a sua oficina, estava a tratar de a ampliar para a colocar no altar-mor da igreja de Cadore. Mas então veio a peste, que o levou a ele e, um mês depois, ao filho Orazio. As restrições da altura impediram que o seu corpo fosse transportado para Cadore. Tiziano acabou, assim, por ser sepultado nos Frari, com quem antes tivera um violento confronto, mas que agora o acolhiam em seu eterno descanso. Mais ainda, foi por um triz que aquele génio, um dos maiores do seu tempo, se salvou de ser enterrado na vala comum..Se um dia Veneza morrer, por invasão das águas ou da pandemia do turismo, talvez leve a Pietà com ela, privando-nos para sempre do testamento de Tiziano Vecellio - e da lembrança da nossa própria morte..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.