"Se nos mantivermos unidos, a UE continuará à altura dos desafios"

Brunch com a Representante da Comissão Europeia em Portugal, Sofia Moreira de Sousa
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O nosso brunch está combinado para as dez da manhã no Joyeux São Bento, um acolhedor café-restaurante em frente à Assembleia da República. A escolha foi de Sofia Moreira de Sousa, chefe da Representação da Comissão Europeia em Portugal, que explica gostar de comer ali um croissant de manhãzinha em dias de ida ao Parlamento ou vir à hora de almoço para umas quiches que recomenda. Mas o Joyeux é também, lê-se junto à caixa, "a primeira família de cafés-restaurantes em Portugal que emprega e forma pessoas com dificuldades intelectuais e do desenvolvimento" e, portanto, percebo que Sofia, nascida na Maia em 1973 e senhora já de uma impressionante carreira internacional, não descure a promoção dos valores humanistas que, a par do processo de unidade política, estão na génese da União Europeia em 1957. Não fosse Portugal um Estado-membro dos 27, eu estaria formalmente à mesa com a embaixadora da UE em Lisboa. Assim, como a conversa vai demonstrar, estou a falar com uma embaixadora do europeísmo, vocação que começou cedo e foi logo reforçada por uma experiência na Alemanha.

"Estudei no liceu Gonçalo Mendes da Maia, assim chamado para homenagear o Lidador, um jovem nobre destemido que lutou ao lado de D. Afonso Henriques. Fiz Direito na Católica do Porto, onde existiam apenas parcerias Erasmus com universidades em Itália e em Passau, na Alemanha. O meu sonho de poder ler Zarathustra de Nietzsche na versão original tinha-me já levado a frequentar o Goethe-Institut, no Porto, mas percebi que não chegaria lá se não estivesse imersa no idioma no dia a dia. A vontade de viver na Alemanha, e o interesse que as aulas de Direito Internacional Público me despertaram pelas organizações internacionais, deram-me a força para convencer os meus pais que estudar direito europeu ao abrigo do programa Erasmus - praticamente desconhecido na época - era imprescindível. Esta experiência mudou a minha vida. Aproveitei os seis meses até ao último segundo, e aproveitei cada segundo comprado por moedas na cabine telefónica quando ligava, uma vez por semana, para casa para dar sinais de vida. Foi na Alemanha que vivi o meu primeiro Natal com neve e primeira ceia de Natal de salsichas e salada de batata", conta Sofia, enquanto come o tal croissant, acompanhado por uma meia de leite. Para mim, meia de leite e uma sandes de fiambre. O prometedor brunch do Joyeux, que vai dos ovos mexidos ao salmão fumado, fica para outra oportunidade

O regresso ao Porto foi só para terminar Direito, pois seguiu-se Hamburgo, onde obteve uma bolsa para fazer aquilo que os alemães chamam um LL.M (Legum Magister). E a parte prática chegou através de estágio na Comissão Europeia em Bruxelas - "na altura DG Relex, que de relax não tinha muito pois trabalhávamos imenso, e divertíamo-nos em igual medida", diz Sofia, entre risos. No final do estágio, voltou para a Alemanha, desta vez para Trier, onde trabalhou na Academia de Direito Europeu.

Acompanho fascinado o início do percurso pós-licenciatura de Sofia quando, de repente, chega, no relato, o surpreendente "voo", como a própria descreve, para a Agência Espacial Europeia. Ali desempenhou funções de external user interface expert, que explica, num tom divertido, ter sido "o título mais impressionante que alguma vez terei num cartão de visita, mas que me permitiu regressar às relações externas, não às extraplanetárias, mas entre instituições e países terceiros que desenvolviam os seus sistemas de navegação e posicionamento por satélite".

Em 2003, dá-se a entrada para o Secretariado-Geral do Conselho da União Europeia, na equipa dos Novos Estados Independentes. "Recordo-me da primeira vez que assisti a uma quantidade infindável de bandeiras da UE a esvoaçar: quando o Falcon aterrou em Kyiv, em novembro de 2004, e o alto-representante para a Política Externa Javier Solana foi recebido por uma multidão de jovens ucranianos, pois fazíamos parte do processo de facilitação das negociações do que foi a Revolução Laranja. Aliás, idêntica manifestação espontânea de carinho pela UE só voltei a ver em junho de 2016, em Londres, após ser conhecido o resultado do referendo, quando muitos perceberam o resultado de não terem votado ou de não terem participado na campanha", sublinha Sofia, numa referência ao Brexit que é muito pessoal, pois o marido, Guy Banim, é irlandês e também britânico e os filhos do casal têm as três nacionalidades. "Ironia da Humanidade: damos valor ao que ainda não temos e ao que perdemos, mais do que ao que temos", acrescenta.

Conversamos sobre África agora, continente em que Sofia viveu muitos anos, em diferentes países, da Etiópia (onde, comentamos, houve tanto contacto com os portugueses há 500 anos) à África do Sul, sendo embaixadora da UE em Cabo Verde até, em 2021, assumir as atuais funções: "Trabalhar na diplomacia europeia é um privilégio e um grande desafio. É exercer diplomacia em ambas as direções - na tomada de posições, pois a política externa europeia necessita de unanimidade, e na ação com entidades e países terceiros. Tive um diretor-geral que dizia que política externa é, ao mesmo tempo, objetivo e técnica. Objetivo: é preciso saber o que queremos. Depois, é necessário técnica: saber o que fazer para obter o que queremos. Tive o privilégio de trabalhar em ambas as vertentes. Na formulação dos objetivos, nas reuniões e interações com os Estados-membros enquanto parte da equipa do Secretariado Geral do Conselho, e nas origens do serviço da Ação Externa - criado com o Tratado de Lisboa - em Bruxelas. E de trabalhar na realização desses objetivos, e que aliás, é onde mais me realizo. No exterior. Com os outros. É exercendo diplomacia pública, ouvindo, aprendendo, absorvendo como é a realidade de outros países, de outras culturas e ganhando a confiança dos outros que podemos obter o máximo da nossa interação. A experiência na Etiópia, como conselheira política na Missão diplomática da UE junto da União Africana foi a mais multilateral da minha carreira. Vivi o provérbio africano "Vai sozinho se queres ir rápido, mas vai acompanhado se queres ir longe"".

Há um episódio que ilustra bem o provérbio: "Em 2010, na cafetaria da União Africana, tive a ideia de organizar uma subida ao Kilimanjaro. O grupo foi crescendo e no final éramos já mais de 40: africanos, europeus e asiáticos com idades entre 14 e 61 anos. O mais impressionante foi termos conseguido, todas e todos, apesar das dificuldades, subir e içar as bandeiras da UE, Nações Unidas e União Africana, no cume do Kilimanjaro. Optámos pelo percurso mais longo, que melhor permitisse a adaptação à falta de oxigénio e lá conseguimos chegar ao cume, porque a dinâmica de entreajuda funcionou". Isto, "não obstante a falta do duche durante sete dias", brinca Sofia.

Relembrando que a UE tem mais de 140 missões diplomáticas, a representante da Comissão em Portugal não hesita em dizer que "o trabalho que fazemos, no diálogo, na proteção dos interesses e valores da União, na criação de pontes e na resolução de diferendos é único. As guerras e os conflitos que se ganham são aqueles que não acontecem. E para que não aconteçam há uma equipa empenhada, espalhada pelo mundo e que, em coordenação estreita com as representações diplomáticas dos países da UE, representa e apoia também os que não estão. Um exemplo que vivi foi a capacidade de chegar aos mais altos interlocutores na África do Sul e acordar matérias várias com uma eficácia única, pois representávamos inúmeros países e políticas europeias de um mercado com quase 500 milhões de pessoas. Com o eclodir da pandemia - e estava eu em posto em Cabo Verde - , os esforços empreendidos pela Team Europe, tanto na contribuição para a produção e distribuição de vacinas no mundo, como o apoio imediato ao orçamento de Estado de países terceiros, ou mesmo a coordenação da repatriação de turistas e cidadãos europeus pelo mundo fora só foi possível com o total empenho das Missões Diplomáticas europeias. Ser embaixadora da UE é especial. É construir pontes de muitos e diversos materiais. É não ter um prato nacional, nem uma só língua, mas ser sempre 12 estrelas. Um desafio e um privilégio."

Pedimos ambos um café e Sofia atende o telefone. É o marido, que combina passar pelo Joyeux para lhe dar boleia. "Prefiro andar de transportes públicos, mas para onde tenho de ir hoje é mais prático o carro", justifica. Aproveito para perguntar como é a vida familiar de alguém que muda de país de poucos em poucos anos. "Conheci o meu companheiro em Bruxelas, e ambos sofremos da mesma vontade de perceber o mundo. Irlandês com nacionalidade britânica, era funcionário destacado no gabinete do comissário de Relações Externas Chris Patten. Conhecemo-nos num edifício da Comissão, quando lhe pedi ajuda para um texto que tinha feito no âmbito das negociações do Mercosul. Ele, entretanto, despediu-se e abraçou uma carreira de consultor e professor na área de mediação de paz e diplomacia preventiva, o que nos permitiu viver juntos em cinco países. Temos duas crianças com 9 e 11 anos que sempre falaram português e inglês, mas que só agora vivem em Portugal. Tentámos, desde sempre, manter os laços com Portugal, Irlanda e Reino Unido, onde temos família".

Sobre o impacto do Brexit, Sofia diz que "foi, de certa forma, muito emocional - um sentimento de perda em termos de destruição de um grande sonho de forjar um futuro comum para os europeus. Foi difícil não encará-lo, pessoalmente, como uma rejeição do trabalho dos funcionários da UE, incluindo muitos colegas e amigos britânicos dedicados que contribuíram muito para a construção europeia. Mais ou menos como viver um divórcio indesejado. Para o meu marido foi também doloroso, porque tinha trabalhado na implementação do Acordo de Paz da Irlanda do Norte (Good Friday Agreement), sustentado pela adesão à UE. Ficou bastante irritado com a ignorância deliberada daqueles que acreditavam que seria fácil conciliar o Brexit com o estatuto constitucional único da Irlanda do Norte. Pelo menos, quando visitamos amigos ou familiares em Inglaterra, já não temos de justificar a existência da UE. Agora sinto que há uma menor necessidade de uma certa raiva irracional contra a UE no Reino Unido, e tenho sentido mesmo uma maior apreciação dos britânicos sobre o que a UE realmente é."

É habitual o representante da Comissão Europeia nos Estados-membros ser um nacional do país, ou pelo menos alguém que conheça bem a língua e a cultura. Sobre a sua missão em Portugal, Sofia afirma que "o meu papel e o da equipa da Representação é de dialogar com os cidadãos e dar a conhecer as iniciativas da Comissão e da União Europeia de uma forma que seja relevante para a realidade portuguesa, o que pode não ser igual à dos outros países da União. Um diálogo em que as preocupações e os sonhos dos cidadãos que ouvimos são partilhados com os colegas responsáveis pelo acompanhamento das várias políticas no seio da UE. Um diálogo de proximidade, que assenta no facto de a União Europeia ser construída por todos os que vivem no espaço europeu. Incluir a diversidade étnica, geracional, geográfica, de competências ou de áreas profissionais ou de interesse, entre todas as outras, no trabalho tem sido a minha forma de estar na diplomacia, pois os diálogos - e a aprendizagem - são tão mais ricos quão diversos são os contextos e os interlocutores. A Europa é mais rica pela sua diversidade e temos de saber fomentar esta riqueza. Uma União assente no diálogo e partilha de pontos de vista diferentes é essencial para chegarmos ao conjunto de soluções comuns"."

Sobre o que faz a Representação, diz a sua número um que "além de um diálogo diário entre a Comissão Europeia em Bruxelas e as partes interessadas em Portugal sobre os muitos e diversos temas que estão a ser debatidos, propostos ou implementados, organizamos pelo país várias iniciativas. Enumero algumas: campanhas digitais; formações e assessoria de imprensa; eventos em forte colaboração com entidades locais, como as celebrações do Dia da Europa, a 9 de maio, em vários pontos do país; a nossa escola de verão Summer CEmp; parcerias com associações culturais, com escolas e universidades por todo o país para aumentar o conhecimento e participação dos jovens, como a Next-Generation:YOU!" Decidida a não se ficar por Lisboa, Sofia sublinha que já organizaram atividades desde Bragança a Rabo de Peixe, passando por Ponte da Barca e Mértola.

"É importante valorizarmos o que temos, sob pena de o perdermos. A UE é o maior bloco comercial do mundo, é o maior doador humanitário, e consegue um equilíbrio entre democracia, liberdade(s), desenvolvimento económico e proteção social ímpar. E tudo isto acontece porque um conjunto de países independentes decidiu trabalhar em conjunto para melhorar as condições de vida dos seus cidadãos. Apesar de tudo o que ainda resta por fazer, dos desafios que, por vezes, parecem intransponíveis, da necessidade constante de negociação e compromisso, devemos sempre relembrar os factos e as razões que fazem da UE um espaço de proteção da dignidade humana, e participar ativamente na sua construção. E motivar as pessoas em Portugal a participar neste caminho é a minha missão atual. Juntos somos, realmente, mais fortes", sublinha.

Comento com Sofia que o meu filho foi um dos participantes no recente Summer CEmp organizado em Ponte da Barca e pergunto como está o sentimento europeísta em Portugal, sobretudo entre os jovens.

"Há um grande espírito europeísta em Portugal, sim. Mas ainda sinto que muitas vezes associamos os benefícios da Europa aos fundos comunitários. É necessário falar mais da razão de ser, dos objetivos da construção Europeia e do papel de cada um de nós nessa mesma construção. Como disse Schuman, "A Europa não se construirá de uma só vez, nem de acordo com um plano único. Construir-se-á através de realizações concretas que criarão, antes de mais, uma solidariedade de facto." Precisamos de mais manifestações de cidadania, de trazer mais interessados para o debate e para ações concretas na construção da Europa que queremos. Não podemos ser sujeitos passivos no processo de tomada de decisões que nos afetam no dia a dia. Os resultados obtidos durante os a escola de verão da Representação, o Summer CEmp, ou até mesmo na iniciativa Next Generation: YOU! (que envolve várias universidades para debater temas europeus) mostram a mais valia da criação de espaços de debate e construção europeia junto da próxima geração de decisores."

Chega um simpático britânico (ou deverei dizer irlandês?), que me cumprimenta em português. Penso nos Acordos de Sexta-Feira Santa e se não está aqui mais uma oportunidade de brunch com. Sofia tem de sair, mas antes ainda encontra um minuto para assegurar que olha para o futuro do projeto europeu "com confiança, determinação e acima de tudo com muito empenho em construí-lo. A celeridade e eficácia das respostas da União Europeia à pandemia e à crise energética, a determinação da resposta da Europa às alterações climáticas, a adoção unânime das sanções à Rússia devido à invasão da Ucrânia, tudo isto resultou do empenho coletivo de União na resposta a crises. E do trabalho incansável de muitos colegas que conseguiram traduzir em textos normativos essa unidade e determinação. Acredito que se nos mantivermos unidos, a União Europeia continuará à altura dos desafios. Mas todos temos de fazer a nossa parte. A começar pelo exercício do direito e dever de voto nas eleições europeias".

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