"Se não fosse a dona Fátima não tínhamos conseguido ter a escritura e as obras"

Os moradores do bairro de São João de Brito já viram chegar as máquinas para os trabalhos de melhoria da zona, desde logo o saneamento básico. Começaram com a assinatura dos terrenos onde construíram as casas. Os resistentes esperaram mais de 40 anos.
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Manuel Rodrigues trabalhava na Tabaqueira, em Cabo Ruivo, Lisboa. Morava nas Galinheiras, na casa de um irmão que o acolheu, à mulher e ao filho, vindos de Carmona, Angola. "Apanhava o autocarro e fazia o caminho final a pé para poupar dinheiro, passava sempre na Avenida do Brasil." Reparou nuns caixotes iguais aos que tinha despachado ao pé de casas em construção. Subiu o pequeno cerro e confirmou que eram pessoas de Angola. Contaram-lhe que tinham conseguido um terreno para construir casa. Perguntou o que era preciso fazer e ouviu: "Faz o pedido na Polícia Municipal." E assim nasceu o bairro São João de Brito.


Manuel mudou-se para o bairro em setembro de 1975, para quatro paredes e um teto, nem porta tinha. O resto foi construindo nas folgas do trabalho, com a ajuda da mulher, Maria Amália Rodrigues, e dos vizinhos. É o morador mais antigo: "Houve quem viesse primeiro, mas já cá não está." Casas de autoconstrução e de entreajuda, também nas tristezas e nas alegrias.

O reinício de vida em Lisboa de Manuel, 80 anos, e de Maria Amália, 71, é muito idêntico ao dos vizinhos. A maioria nasceu no norte de Portugal, emigrou para Angola e regressou após o 25 de Abril, que permitiu a independência dos Países Africanos de Língua Portuguesa. Angola tornou-se independente a 11 de novembro de 1975. Regressaram às origens sem meios e a ter de começar tudo de novo.
O terreno onde construíram as suas casas fica entre a Avenida do Brasil e a Segunda Circular, em frente ao aeroporto de Lisboa. Cada parcela foi loteada pelas autoridades e cedida às pessoas que fizeram o pedido. Construíram as suas próprias casas, fizeram canalizações e montaram os fios da eletricidade. Tijolo a tijolo, melhoria aqui e um acrescento ali, mais uma assoalhada à medida das poupanças e da família a crescer. "Não é construção clandestina", sublinha Fátima Martins, a presidente de Associação de Moradores de São João de Brito, na freguesia de Alvalade. "As pessoas foram autorizadas a construir e sempre pagaram as taxas."

Foi há 45 anos e, até 2018, viveram na incerteza de não poder chamar "sua" à casa que construíram Em 1997, às portas da Expo"98, desanimaram. "Fizeram uma pressão muito grande para as pessoas saírem e alguns saíram, mas com muita persistência, muita reclamação, muita reunião na Câmara Municipal de Lisboa, muitas noites perdidas, conseguimos", diz Fátima, enquanto passeia pelo bairro.


A presidente da associação desde 1997, que já foi gestora de seguros, é cumprimentada por todos. "Se não fosse a dona Fátima, não tínhamos conseguido as escrituras e estas obras", asseguram. A Câmara Municipal de Lisboa acabou por decidir vender os terrenos e fazer obras de requalificação do bairro, iniciadas neste mês. Fátima pergunta pelos seus filhos e netos, pelas maleitas, há quem lhe peça "um minutinho" para tirar uma dúvida ou falar de um problema.
Habitam 120 famílias no bairro (342 pessoas, Censos de 2011), distribuídas por 118 edifícios. O valor dos terrenos depende da área e dos anos de residência e varia entre 12 mil e 15 mil euros, em média.
Manuel e Maria Amália Rodrigues fizeram a escritura a 5 de fevereiro de 2018, agora estão a fazer melhorias e a alargar o espaço, "contentíssimos", asseguram.
Naquela casa, sofreram a tristeza de perder um filho, mas também viveram a alegria de ter um segundo filho e dois netos. "Cheguei a vir para aqui trabalhar sozinha, fizemos tudo", recorda a Amália, ex-funcionária do Ministério da Educação. Descreve o Manuel: "Andámos cinco anos para fazer a casinha. Ganhava cinco contos por mês e estava sempre pronto a fazer horas para ganhar mais, tudo o que sobrava aplicava aqui." Ele é de Chaves (distrito de Vila Real) e ela do Mogadouro (Bragança).
Fátima Martins agradece os elogios, reconhecendo o seu mérito na conquista, até porque grande parte dos vizinhos são reformados. "Acreditei sempre, houve dias em que estava mais em baixo, mas no dia seguinte já estava a pressionar. Não fazia sentido as pessoas terem as suas casas e não poderem usufruir delas em pleno. Fomos resistindo e a pensar que alguém podia mudar de ideias", explica.


Diamantino Vieira, 80 anos, nasceu em Vila Nova de Ourém e, depois da tropa, ficou em Angola, de onde regressou em 1978. É casado com Andrelina, 76 anos. Conta: "Passei na Avenida do Brasil e vi a fazerem as casas, quis saber o que tinham feito e disseram-me para ir à Polícia Municipal na Palhavã. Fui e deram autorização para construir."
Andrelina trabalhou no Instituto da Água, ele montou uma ourivesaria em Moscavide, que ainda se mantém. "Construímos isto sozinhos, com a ajuda dos vizinhos. No meu trabalho não fiz calos, mas aqui fiz muitos", brinca Diamantino. Demorou três anos a ter algo a que pudesse chamar casa.


Ao lado, mora João Afonso, 77 anos. Veio de Angola com a mulher, Maria Augusta Pires, em 1976, dois filhos, a sogra e a cunhada. Vai procurar umas fotos antigas, do início da construção das casas. Lá está ele, os vizinhos e o filho, então com 4 anos, a "dar cimento". "Quando viemos de Angola, andávamos aos caídos. Dormíamos no chão da sala da casa de um familiar que vivia na Graça. Vi uns da nossa terra [Vinhais, Bragança] a fazer uma casa nas Olaias, perguntei como tinham conseguido. Responderam que ali não havia terrenos, mas que havia para os lados da Rotunda do Relógio", diz João Afonso.


Viviam em Luanda, onde tinham um comércio. Em Portugal, ele foi motorista, mais tarde abriram uma mercearia no bairro. Era Augusta que ali estava a maior parte dos dias, até que a idade e a falta de clientes levaram ao seu encerramento. "Este bairro é maravilhoso, sossegado, gente boa, é como uma família", diz. Também já lhes morreu uma filha. Têm quatro netos.

Marília Morais, 70 anos, Manuel Morais, 76, de Chaves, foram dos últimos a chegar, deixaram Luanda em 1978. E quem encontraram? Os vizinhos Diamantino e Andrelina. "Andávamos às voltas com os tijolos e o cimento, até que um dia o meu marido diz: "Olá, está ali o Diamantino." Grande festa", conta a Marília, que passa muito do seu tempo a cuidar das orquídeas. Ele ocupa-se mais da horta, agora com couve-portuguesa, cebolinho, ervilhas e favas. Ele trabalhava no aeroporto e ela era funcionária pública. Têm dois filhos e duas netas.


Dos quatro casais que ali criaram as raízes, só um já fez a escritura, todos com filhos e netos que partilham o amor pelo bairro. No dia da reportagem do DN, Diamantino e Augusta têm a neta a almoçar e a filha de Marília e Manuel prepara com a colega a reabertura do jardim infantil onde trabalham.
Os reformados representam o grande grupo do bairro. Fátima Martins, 57 anos, acaba por ser das residentes mais novas. Os pais compraram a casa a um amigo, vieram para o bairro em 1982, tinha ela 18 anos. Moram na via principal, a Rua F, artéria conhecida por uma letra como praticamente todas. Vive no largo do chafariz, onde se abastecia a população. A associação foi criada em 1986 e oficializada dois anos depois para tratar da água canalizada.
Dar um nome às ruas é outro dos projetos da requalificação, que inclui a substituição da rede de saneamento, água, eletricidade, gás , telecomunicações e arruamentos, alguns deles degradados.


"O processo de requalificação começou com a assinatura das primeiras escrituras em abril de 2018, só a Rua das Mimosas ficou para mais tarde, espera o parecer sobre a alteração do PDM. O papel da Junta de Freguesia de Alvalade tem sido o de permanente interlocutor dos moradores", explica o seu presidente, José António Borges.
Vítor Martins, 45 anos, motorista, é outro dos moradores mais jovens. "Os meus pais eram de Castro D"Aire e vieram para Marvila, viviam num quartito. Os terrenos eram para os retornados das ex-colónias, mas ninguém queria este e o meu pai viu aqui uma oportunidade", conta. A sua casa fica no limite do bairro junto à Segunda Circular. É filho único, nunca dali saiu, onde já vive uma filha. Tem três filhos. Adorava que os futuros netos vivenciassem os seus tempos de menino. "Era maravilhoso, éramos imensos, todos miúdos, todos nos conhecíamos e brincávamos."
Entre o bairro e os prédios da Avenida do Brasil fica o Complexo Desportivo de São João de Brito, a sede do Clube de Rugby São Miguel. Tem sofrido obras de melhoramento e espera ser, também, uma mais-valia para os moradores.

"Somos um clube virado para a comunidade, não apenas na formação de atletas mas também pelos valores que partilhamos: amizade, solidariedade, responsabilidade. Olhamos para a requalificação do bairro como uma obra há muito esperada e sempre adiada", diz o seu presidente, Miguel Teixeira. Querem fazer parte desse projeto e continuar o trabalho desenvolvido com a pandemia: apoiar os mais fragilizados.

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