"Se exigimos tudo de uma vez rebentamos com a coisa"
Não há gente sentada contra as paredes caiadas para a típica foto alentejana. Não há gente, aliás. Nas ruas de Alcórrego, ou Alcôrrego - é conforme a tabuleta -, a terra onde o PCP nas legislativas de 2015 teve o seu melhor resultado nacional, 64,5% dos 279 votos deitados na urna, as casas bem cuidadas encenam o deserto do interior e esmorecem o ímpeto jornalístico. Na padaria, a padeira explica: "Há pouca gente, a maioria são idosos, e com o frio resguardam-se." O óbvio - apesar do sol está um gelo nesta última manhã de novembro. Ao fim de três voltas às poucas ruas, enfim alguém. É Arlete Traquinas Pires Augusto, 71 anos, rodeada de galinhas, gatos, um cão e uma oliveira centenária no seu quintal desarrumado.
A conversa vai a meio - já contou que aprendeu a ceifar mal saiu da 4.ª classe, aos 11, começando logo a trabalhar, que foi madrinha de guerra e se escreveu cinco anos com o soldado enviado para Angola que havia de ser seu marido ("E só nos vimos pela primeira vez no dia em que ele veio cá pedir-me namoro, tinha eu 18."), que tem dois filhos, uma rapariga e um rapaz, ela empregada doméstica e ele pedreiro, mais um neto de 19 que não quer estudar, só gosta de tocar acordeão, que viveu no Norte, de onde o marido era, durante 16 anos e voltou ao Alentejo depois do 25 de Abril - quando finalmente parece haver confiança para falar de política. Arlete sorri, hesita, o olhar em nesga direito ao de quem questiona, como quem radiografa o coração. "Sou comunista. Mesmo filiada. Desde os 14." Então foi militante clandestina. Assente. "Nem os meus pais sabiam. E o meu irmão - só tive um irmão, dez anos mais velho - também era comunista e eu não sabia dele nem ele de mim. Não se falava disso. Eu nem usava o meu verdadeiro nome. Tinha um nome diferente, que já não recordo."
Ter tido um nome de guerra e não o lembrar, como se ser membro de uma organização ilegal e correr o risco da prisão e da tortura fosse algo a não merecer grande lembrança, uma espécie de inevitabilidade. "Foi mais ou menos no ano das oito horas [refere-se à luta pela jornada de trabalho de oito horas, que os trabalhadores do comércio e os operários da indústria conquistaram em Portugal em 1919 mas que os agrícolas só alcançariam em 1962].Trabalhávamos de sol a sol e chegávamos a andar uma hora a pé para ir para os campos. Fiz greve com os outros, e tinha uma pessoa amiga a dizer para ajudar os presos políticos. Fazíamos rifas e ajudávamos assim. E acabei por entrar no partido. O PCP é o partido dos trabalhadores, como trabalhadora não podia ir para outro."
A naturalidade do relato prolonga-se na espécie de desinteresse pela política que hoje evidencia, apesar de pela primeira vez desde 1975 o seu partido ter assumido responsabilidades na viabilização de um governo. "Acho bem, acho que alguém tinha de fazer alguma coisa a ver se isto melhora. Mas a idade é outra, desliga-se mais. Começo a querer descanso, não vejo muitas notícias. Ligo mais é à bola. O meu Benfica tem de ganhar sempre."
Muito comum, aqui, a acumular as duas devoções. Joaquina Marques, 72 anos, é mais um caso, mesmo se, sendo o marido militante e ex-presidente da junta pelo PCP, garante nunca se ter inscrito: "Também sou benfiquista e não sou sócia." Veio ao minimercado, na confluência entre a Rua Catarina Eufémia, onde mora, e a 1.º de Maio, aviar-se, e entra na conversa com calor. "As pessoas aqui são comunistas porque sofreram muito. Passaram muito antes do 25 de Abril pela falta de trabalho, tinham de ir trabalhar longe, faziam quilómetros a pé, iam para barracões grandes dormir, apanhavam junco para colchão e tomavam banho no ribeiro, na labuta de sol a sol. Muito lutaram por uma vida mais digna. As pessoas agora queixam-se, mas deus queira que nunca venham a saber o que é passar mesmo mal. Alguma vez uma pessoa que trabalhava tinha uma casinha como tem hoje, ou roupa como se tem hoje? Há gente com memória curta. Olhe, eu não passei por isso mas não me esqueço."
Joaquina e o marido, que estiveram emigrados em Inglaterra e regressaram em 1976, são donos do minimercado Marques (como o seu apelido), que, após a reforma dos dois, está a ser explorado por Luzia Martins, de 56 anos. O edifício foi a loja da Cooperativa 1.º de Maio, que dá o nome à rua, e João Luís, o marido de Joaquina, era o encarregado. "Quando eles começaram a vender coisas, foi a primeira coisa que venderam, e comprámos." Suspira. "Foi fechando tudo. Quando havia a cooperativa, as fábricas, havia muito trabalho. Foram acabando com as coisas."
"Não se pode fazer milagres"
Assume ter sido apanhada desprevenida quando há um ano se anunciou o acordo entre o PCP e o PS. "Foi um bocadinho surpresa, mas gosto, é um bocadinho melhor." Luzia, que foi operária de uma fábrica de laticínios da zona que fechou para abrir mais a norte, concorda: "Mas não podem fazer milagres, não é? Estão a restituir uma parte das coisas , mas não se fazem omeletas sem ovos, isto está muito complicado." Não quer dizer em quem vota, mas no PSD ou CDS não há de ser. "Esses andam a reclamar contra os impostos? Não se passava um dia sem meterem mais um imposto e têm boca para criticar?" Mas não aprova tudo o que se faz agora. "Há uma coisa que acho muito mal. Diziam que as reformas dos pequeninos iam para cima, mas agora dizem que as mais baixas não as sobem."
Luzia refere-se à intenção do PS de não incluir no aumento extraordinário de 10 euros para as reformas abaixo de 600 euros as que haviam sido atualizadas nos quatro anos do governo PSD-CDS, e que correspondem às carreiras contributivas mais curtas (a média, de acordo com a secretária de Estado da Segurança Social, é de nove anos de descontos). Uma contextualização que deixa Luzia e Joaquina reticentes. Esta última retorque: "O meu marido tem mais de 40 anos de descontos e nem 300 euros de reforma tem. O homem nem sabe o que há de fazer para gastar tanto dinheiro." Faz uma pausa para deixar ressoar a ironia. "As nossas reformas somadas pouco passam dos 500. Ainda agora fui ao médico por causa das cataratas e ele ralhou comigo, que já lá devia ter ido. Fiz de conta que não sabia, mas sabia. Estava a poupar." Luzia conclui: "Gostávamos que o governo melhorasse a vida dos pobrezinhos." "É preciso é que sejam mesmo pobrezinhos, que há muitos a fazer que são", comenta uma mulher mais jovem que assiste à conversa e não se identifica nem diz para que lado pende: "Aqui ainda se usa muito a cor. Quem é da cor, facilita-se, quem não é..."
"Marcelo é uma entremeada"
Mas as cores baralham-se, aqui. No café o Caçador, todos os três clientes - o coveiro da terra, um tratorista e um industrial reformado -, comunistas de cartão, não só celebram o acordo como têm elogios para António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa. "Para mim há duas pessoas que são positivas", diz Miguel Cravo, 78 anos, que se identifica como "industrial", ex-proprietário de lavandarias. "O Costa e o Marcelo." Mas não são comunistas. António Madeira, o coveiro, 58 anos, sorri. "Costa não é comunista mas é socialista. E o Marcelo não é comunista mas está-se a fazer. É uma entremeada. Sei a história dele toda, mas para mim está a fazer um excelente trabalho." Sobre a governação, acha o mesmo. "Vamos recuperar amanhã uma coisa que o s outros nos tiraram, o feriado." O industrial assente. "Fizeram tudo o que financeiramente era possível fazer. Não puderam fazer mais porque o dinheiro é pouco."
Não se pode fazer logo tudo, acha o coveiro. "Mas se não fosse o partido comunista não era nada feito." Há um senão, porém: "Pelo que tenho visto, o PS nas sondagens está à beira da maioria absoluta. E aí é que está a rasteira", lamenta. Miguel Cravo fita-o, os olhos azuis irradiando calma: "Oxalá ganhe." A frase não tem o efeito que se poderia antecipar. Eduardo Pinto, que aos 79 anos ainda anda a trabalhar no seu trator e está no PCP desde adolescente, já tinha dito que entre as grandes conquistas do 25 de Abril estava cada um ser aquilo que quer ser e dizer o que pensa: "Dantes não era assim."
Mas, afinal, onde estão as grandes divisões PCP-PS, que impediram entendimentos durante os 40 anos desde que há eleições livres e fizeram dos dois partidos "inimigos íntimos"? Onde se risca a divisão? O que é ser da "verdadeira esquerda"? O tratorista responde: "É lutarmos pelos nossos direitos e sermos sérios e honestos." E o PS, é esquerda ou direita? "Há lá pessoas de esquerda e de direita." OK. Então e em termos de políticas? Que é que estes comunistas gostariam que acontecesse, que medidas preconizam? António Madeira, já a beber café ao balcão, reflete. "O que eu queria era que as coisas que já foram feitas se mantenham, e que não venham piores. E acho que devíamos sair da União Europeia. Devíamos mandar no que é nosso. E investir na agricultura. Anda-se a pagar para as pessoas não cultivarem. Se o homem do campo não planta, o da cidade não janta." Conclui: "E agora tenho de ir trabalhar. Ainda não morreu ninguém hoje, mas nunca se sabe."
"É tudo tão pouco"
"Para mim o que era preciso era uma nova reforma agrária. Já não há trabalho no campo. Esta zona está condenada à miséria. Aqui nasce o rio Sorraia, os campos do Sorraia davam trabalho a centenas e centenas de pessoas." Estamos no Couço, concelho de Coruche, na fronteira entre Ribatejo e Alentejo, uma terra distinguida por Jorge Sampaio como membro honorário da Ordem da Liberdade, em penhor da sua luta pela liberdade durante a ditadura, e que em 1975 participou entusiasticamente nas ocupações de terras. Quem fala é Manuel Joaquim Brás, 82 anos, militante comunista desde 1957.
Ex-trabalhador agrícola, foi preso em 1960, a três dias do Natal, e torturado pela PIDE . "Fizeram-me tortura do sono, pisaram-me todo, deixaram-me como morto. E estive dois anos em Caxias." Recrutado por um camarada de tropa, diz que o que o levou para o PCP, apesar de estar consciente dos riscos, foi saber que "só com a luta se consegue alguma coisa". Ainda acha o mesmo: "Não me pergunte se estou contente com a situação. Ia contra a minha ideia se lhe dissesse que estou contente. Estou lutando. Mas se em vez de estar lá o PS estivessem os outros era bem pior."
O amigo António Joaquim Galvão, 79 anos, alfaiate, igualmente militante, parece menos renitente. "Quando ouvi alguém [Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP] dizer "O PS só não governa se não quiser" fiquei muito contente. Isto joga a meu favor, pensei. É uma esperança, sobretudo para quem vive pior do que eu."
Estamos no ateliê de Galvão, que chamou dois amigos para falar com o DN. O outro é António Inácio Sarguinheira Caetano, 77 anos, reformado da construção civil. É também o mais calado, mas tem isto para dizer: "Este governo não é um governo meu, é do PS. E nem sempre as negociações correm bem. Mas vamos lá a ver as coisas bem vistas. Às vezes damos dois passos à frente e recuamos um. Ficamos com um lá adiante, porém."
E se o PS, de boleia no acordo, saltar para a maioria absoluta? "Estaremos uns anos à espera, mas sabemos que eles sozinhos não se aguentam", comenta Galvão. Riem-se. E o PCP no governo? Manuel fica sério. "O PCP tem muitos compromissos com o povo e é um risco. Fazendo uma coligação não sabemos se ia ser capaz de os satisfazer. Se calhar não é coisa que convenha." Se calhar não convém sequer, como se viu ontem no discurso de Jerónimo, assumir que há um acordo. Mas Manuel fala antes da negação do seu secretário-geral. "Há camaradas nossos que não acham que isto seja bom. É tudo tão pouco, realmente. Mas se vamos exigir tudo de uma vez rebentamos com a coisa toda."