"Se estou muito tempo sem fazer nada, fico inquieto, com urticárias mentais"

<em>Nação Valente</em> é o novo disco de originais deste autor que faz música mas passou pelo teatro e pelo cinema, e nos últimos anos se dedicou à poesia e à literatura. Como se fosse o primeiro dia do resto da vida dele
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Nasceu em 1945 no Porto e foi de lá que partiu 20 anos depois, primeiro para estudar Psicologia em Genebra, depois pelos caminhos da música e do teatro em Paris e Vancouver, Canadá. Regressou em 1974, com a filha Joana acabada de nascer e com discos já gravados, algumas canções primeiro escritas em francês e depois na língua materna que se tinha mostrado renitente. Ao fim de muitos discos, espetáculos, três livros - poesia, contos e romance - Nação Valente fala de amor e de um país que também é uma história de amor. Uma "coleção de canções", como ele diz, porque a palavra disco está longe da realidade. A apresentação pública será no Capitólio, em Lisboa, a 23 e 24 de fevereiro, e no Porto, na Casa da Música, a 3 e 4 de março.

Nação Valente é uma das dez canções do disco, tem letra tua, como quase todas as outras, exceto a de Márcia.

Sim, essa tem letra e música dela, é uma canção alheia. Às vezes faço versões, mas no disco há duas que têm letra e música minha, e as outras são todas interações, parcerias. Têm letra minha e música de vários compositores e amigos: José Mário Branco, Filipe Raposo, Nuno Rafael, que é o líder da minha banda, e outros.

A canção que dá nome ao disco começa por "Não quero pôr-te numa gaiola / de mão estendida por esmola".

Isso diz tudo. É talvez a canção mais político-social do disco, fala de Portugal. É uma canção pós-troika, do Portugal daquele desejo - "Não quero ver-te acorrentada / sofrendo por tudo e por nada. Há de haver uma outra perspetiva / Há de haver outra solução / Para esta nação tão valente / Há que ir em frente, nação valente." É uma canção de vamos embora, vamos para a frente. Mas também diz uma coisa importante: "Esquece e lembra o que ontem houve". Passámos por um período duro e temos tendência para esquecer isso rapidamente. Esta intuição tem coisas boas e más, mas é preciso lembrar que passámos por esse período e não sentir que de repente está tudo bem. Isto não são cautelas, são uma coisa realista.

Mas ter cautelas é bom, não é?

Cautelas é bom em relação a isto. Numa canção anterior, Só neste País, falei de euforia e de depressão. Temos esta cena bipolar em Portugal, passamos da euforia à depressão e vice-versa. Os tempos da Expo, os tempos do Guterres. O ano passado teve uma segunda parte que não foi boa, com os incêndios, mas tivemos o sucesso no Festival da Canção e no Euro, fomos campeões da Europa, com um herói improvável que é o Éder. Isto também é muito Portugal, o Éder ser o herói improvável.

Porquê?

O curioso nesse jogo é que o Cristiano Ronaldo se lesionou ao princípio e estava tudo perdido, supostamente, porque o grande jogador não pôde jogar. E depois todos se juntam e alguém sai do banco e marca o golo da vitória. Não há nada mais simbólico do que isto. É muito português, aquela coisa do underdog, de um tipo estar por baixo e de repente encontra o caminho. Hoje não somos vistos como uma nação perdedora, quase-quase mas não conseguimos chegar lá. Isso foi sempre um estigma.

Não foi uma coisa alimentada?

Induzida, sim, claro. O conceito de fado no sentido mais lato. Há aquele fado que fala do ser pobre mas da alegria de receber as pessoas.

A Casa Portuguesa?

Sim, e é um caso engraçado, porque foi feita ao segundo grau, ou seja, com ironia. Foram três tipos de Moçambique, o Reinaldo Ferreira e mais dois [música de Artur Fonseca e letra de Vasco Matos Sequeira e Reinaldo Ferreira] com os clichés do que seriam os valores pátrios - "a alegria da pobreza está nesta grande riqueza de dar e ficar contente". E depois foi levada ao primeiro grau. É uma canção muito bem esgalhada e é, aliás, um grande êxito da Amália. Ficou como uma tagline, uma casa portuguesa com certeza. Já estou a divergir mas volto já. A definição de Portugal também está em evolução, naturalmente, e nesta canção eu quis falar dessa coisa um bocado volátil que Portugal tem. Mas também de uma maneira positiva, porque o refrão diz "fronteiras antigas, fronteiras abertas / quero um país de ideias libertas, as mágoas da vida e da vida as ofertas", portanto é apanhar isso tudo como um Portugal global.

Os arranjos deste disco são muito bons.

Ainda bem que essa é a tua opinião, que é generalizada. Eu acho que o Nuno Rafael fez aqui um trabalho muito conseguido. É muito cru, com muitas guitarras acústicas, com percussões que não são a bateria completa e com alguns arranjos que entram noutros setores. Como no arranjo de cordas do Filipe Melo na canção do Zé Mário Branco - Mariana Pais, 21 anos de idade - o próprio arranjo de sopros da canção que eu fiz com o Nuno Rafael - Tipo Contrafação. É um disco muito acústico. E agrada-me isso. Já tínhamos querido voltar a isso e, não direi que não conseguimos, mas fomos por outros caminhos no disco de originais anterior, Mútuo Consentimento [2011]. Funciona bem como um ponto de unidade num disco que é tão vário.

Como idealizas um disco? Como escolhes, como chegas a estes dez temas?

Esteve para ter onze mas ficou uma de fora, há de ter outra vida. A história vem de trás, porque não posso desligar isso de um período em que estive sem fazer muitos originais. Aconteceu ocasionalmente. Uma das canções, Noites de Macau, foi feita para um filme do Ivo Ferreira que está em fase de montagem e misturas [Hotel Império]. A canção foi cantada no filme pela Margarida Vila-Nova, a protagonista do filme, e será essa a versão original embora saia depois da minha. É uma cantora da noite em Macau. Quando componho, certas canções são intransmissíveis, são muito específicas, até de linguagem, para uma determinada pessoa. Há outras que são transmissíveis. Aconteceu em vários casos eu dizer "também vou cantar", como a Bomba-Relógio que foi feita para a Cristina Branco. As versões serão sempre diferentes, personalizadas, e os próprios músicos que pegam nisso são diferentes. É interessante: uma canção tem várias vidas, como uma peça de teatro a um nível mais ambicioso. Quantos Hamlet se fizeram?

Tu próprio fizeste um disco com versões dos outros.

Exato, o Caríssimas Canções [2013], que tem uma história muito curiosa. Começou com crónicas para o Expresso sobre canções de outros, por proposta minha quando me pediram que fizesse uma coluna. Sempre gostei de falar dos outros, das canções dos outros, daquilo que também me alimenta. Depois fui convidado para fazer no CCB uma Carta Aberta, e fiz um espetáculo que depois se propagou, foi à Casa da Música, e acabou por dar uma espécie de projeto global. Gosto muito de interpretar as canções dos outros.

Voltando às tuas canções intransmissíveis?

Eu tinha estado nas lides da ficção narrativa, acabei o meu primeiro romance - Coração Mais que Perfeito [2017, Quetzal].

Estás a escrever mais?

Estou, tenho um outro escrito e estou em processo de revisão ativa. Já tinha publicado na Quetzal o livro de contos Vida Dupla [2014], gosto muito das pessoas de lá e estou muito contente com a interação. Eu não estou sempre a compor canções, não sou de ter coisas na gaveta ou ir compondo sem fito. Até porque, mais e mais, também sou estimulado por convites exteriores.

E tiveste também aquela longa tournée com o Jorge Palma.

Sim. Pelo meio, tive o Caríssimas Canções, o Liberdade [2014], ao vivo, tive o Jorge Palma que também resultou num disco duplo e dvd [2015], e que foi um projeto muito importante, de grande prazer. Até que enfim que eu e o Jorge, que somos grandes amigos e admiradores mútuos, fizemos qualquer coisa juntos. Correu muito bem. Acaba de ser marcado um novo concerto, juro que não sei aonde, não estou a fazer caixinha. A troca de mails dos músicos foi "ainda bem!".

Porque é uma coisa festiva?

É um prazer partilhado. O que há de extraordinário nos trabalhos de grupo e nos espetáculos ao vivo é que se vive, tem-se essas vivências em vários palcos, E a consecução última das canções são os palcos. Nem todas vão ser cantadas em palcos, mas é nessa prova de fogo - não é isso, porque parece que estou a ser julgado - mas é nessa partilha que a canção se efetua na sua plenitude.

Na partilha em cima do palco com o público e com outros músicos?

É. Na ficção tenho tido reações muito curiosas em sessões que fiz em festivais literários, em bibliotecas, opiniões muito surpreendentes e que até me iluminam.

Porquê?

Iluminam-me sobre aspetos do romance que eu não tinha formulado completamente assim.

Tens um retorno?

Mas é um retorno diferido, porque quando se está a falar é uma coisa que já saiu, que as pessoas leram ou não leram. No palco há um confronto e uma partilha diretos com o público. Às vezes as minhas canções não são adquiridas à primeira escuta, o que também não está mal. Há canções que tiveram o seu tempo de crescimento.

Por exemplo?

O Primeiro Dia. A primeira vez que o cantei, as pessoas ficaram "ah, se calhar" E depois passou a ser uma canção que adquiriu uma importância, vá, ficou um bocado emblemática das minhas canções. Mas demorou um bocadinho.

E tinhas alguma expectativa?

Não, eu às vezes engano-me. Mas já não faço isso. Pensei "esta canção vai pegar", e depois por uma razão ou outra não pegou tanto como isso, não sei, talvez as nossas prioridades sejam diferentes das prioridades do público. Talvez haja qualquer coisa musicalmente que não pega tanto. Isso não me perturba propriamente.

Volto à minha pergunta. Como escolhes as dez músicas de um disco e percebes que é um todo, como um puzzle?

Isso é uma leitura posterior, porque nós vamos fazendo. E este disco, esta coleção de canções - até porque hoje a palavra disco é

Desfasada?

Não é desfasada e espero que continue a haver. Mas hoje há outras formas, e até vai sair em vinil também, mas há o digital e o online, etc. Nós vamos fazendo. Demorou a arrancar, vinha uma canção e eu ainda estava envolvido noutros trabalhos. Fui compondo, no sentido literal do termo, aquele puzzle, em cada canção.

Tens primeiro a canção ou a letra?

Primeiro as músicas. Mas isso também vale para mim, para as minhas canções. Geralmente começo pela música, porque a musicalidade da frase literária vem em função da música e da prosódia que vai criar. Isso quase sempre aconteceu, com algumas exceções. O disco em que tive mais parcerias foi o Coincidências [1983], porque era com brasileiros, mas por exemplo na Barca dos Amantes eu entreguei o texto ao Milton [Nascimento] e ele fez a música, foi ao contrário. Uma música é algo de mais abstrato, é uma mancha, e depois na mancha vais encontrando significados. Quando fiz as ilustrações de O Pequeno Livro dos Medos [2007]

um livro para crianças

infanto-juvenil, não para crianças muito pequenas. Tem tido muitas edições e está no Plano Nacional de Leitura e tive sessões em escolas e bibliotecas. Fiz as ilustrações a partir de aguarelas, de manchas, do abstrato para o concreto. Fui encontrando significados. Vi caras - isso acontece-me muitas vezes - naquelas manchas e fui desenhando, tornou-se uma coisa concreta. A letra é um bocadinho isso, versus a música. Começas a encontrar significados e de repente tens ali uma coisa concreta. Muitas vezes encontra-se um tema, muitas vezes não é bem um tema, é uma sequência. Por exemplo, o Baralho de Cartas, que tem letra e música minha, não tem um tema propriamente dito mas é uma canção do amor físico, erótico. Não tinha um tema restrito. No Tipo Contrafação há dois temas, a canção parece que vai ser só uma sátira sobre o tipo serra, vai falando dessas coisas e depois faz a extrapolação para a solidão daquele tipo. A mulher foi-se embora e ele a dizer "O nosso amor era só paixão".

"A mulher dos meus sonhos que nem por sonhos sonhei que me ia deixar"?

E agora ele diz "Lar tipo lar". Ele está a falar de outra coisa, percebe-se, o "tipo qualquer coisa" era uma metáfora.

No fundo estás a contar uma história?

Sim, mas não são histórias com princípio, meio e fim. Há uma coisa narrativa muitas vezes nas canções. Em Mariana Pais, 21 anos de idade, defino aquela rapariga que está a querer ter mundo e vai ter mundo, e que vive em profundidade, às vezes superficialmente - "os meus sonhos mordem pão de trigo e mordem pão-de-ló". É uma rapariga à procura da vida. Identifico-me muito com isso, não só em relação a mim com essa idade mas outras pessoas que conheci, ou os meus próprios filhos. Eles foram à procura de uma definição. Quem procura há de encontrar.

Continuas a procurar?

Sempre a procurar. A criatividade é uma procura. Eu procuro naturalmente, isso é um impulso que não para.

Disseste que não estás sempre a compor. Porque fazes muitas coisas ou estás sem fazer nada?

Às vezes estou sem fazer nada, é a coisa mais salutar do mundo. Temos que ter um dia inútil na vida, porque não são bem inúteis. São inúteis e so what? Não tenho uma obsessão da procura, não sou compulsivo. Mas se estou muito tempo sem criar nada, não sei por que razão, isso é mais obscuro, começo a ficar um bocado inquieto. Com urticária. É uma maneira de dizer. Urticárias mentais.

Começa a ser preciso?

Começa a ser preciso. Antes do Vida Dupla, fiz um livro de poesia que não é para ser musicada chamado O Sangue por um Fio [2019, Assírio & Alvim] e começou por ser um impulso repetido. À noite ia para lá e comecei a fazer um poema, outro, e muito cedo disse assim: espera aí, eu estou a perder tempo, tenho de fazer outras coisas, compor ou qualquer coisa. E depois disse: não, não estou a perder tempo, é isto que eu estou a fazer. Fiquei muito contente que tenha levado isso depois como uma tarefa criativa consequente e que tenha sido um livro.

Continuas a escrever poesia?

Muito pouca, mas tenho coisas escritas, talvez saia um outro livro, ainda não sei como, talvez agregado a imagem. Mas o meu impulso a esse nível é mais de prosa.

Sentiste aquilo que há escritores dizem, que as personagens têm vida própria?

Têm, isso é o cliché narrativo mais adequado da vida porque, quando as personagens crescem, fazem-nos perguntas. E isso é real, porque à medida que as personagens vão tomando forma o Coração mais que perfeito começou com uma personagem feminina, a personagem principal sem dúvida, a Eugénia, mas eu não sabia ainda quem ela era.

Mas fisicamente tem um aspeto, sabes como ela é?

Descrevi muito pouco as personagens, não me interessa muito. Noutros casos posso ter descrito isso e na própria Eugénia descrevi um pouco, mas não foi o foco.

Mas para ti ela tem um rosto?

Tem um rosto muito fluido, é engraçado, nunca quis defini-la para mim próprio de uma maneira muito estrita.

E as tuas etelvinas e os teus casimiros têm rosto?

Também não, mas o que há é caraterísticas, e houve pessoas que me falaram de a Eugénia ter algumas caraterísticas comuns à Etelvina ou à Rita da Balada da Rita. A vida não está fácil mas há uma resiliência, há uma vontade de perseguir alguma força de vida. Nenhum dos meus contos, nem mesmo o romance, se passa geograficamente num local. Não me interessa, pode ser que um dia, num momento qualquer, me interesse mas no próximo também não me interessou.

Existem por si mesmas?

Existem por si mesmas, e nos contos as personagens nem tinham nomes. A primeira vez que voltei a um nome foi precisamente com a canção do Zé Mário, Mariana Pais, 21 anos de idade, e foi logo com nome de família, só faltou o número de contribuinte.

Tens 72 anos, filhos e netos.

Três filhos e três netos. Três filhos de idades algo diferentes: a Joana tem uma diferença de cinco anos do André e tem mais 17 do que a Leonor. São de vidas diferentes. E tenho três netos da Joana. Isto faz parte da vida, são filhos muito interpelantes que sempre interagiram muito comigo. Estive sempre presente - isso não é sequer um orgulho, é uma coisa que para mim é natural. Sempre estive perto deles porque faz parte.

E 72 anos, como é?

Começa-se a ver um caminho um bocadinho curto à frente, quer queiras quer não. Tinha prometido a mim mesmo que depois dos 70 fazia uma festa todos os anos. O que é certo é que não fiz nem aos 71 nem aos 72, estava a fazer outras coisas. Tenho de começar a festejar. Não quero fazer fatalismos, até porque nós podemos morrer de um momento para o outro. Há aqui madeira para bater? Tenho 72 anos muito vividos e vividos criativamente, de vidas, de experiências e aventuras e disparates de vários foros, e de vários países. Quando vim depois do 25 de Abril - eu adoro o Porto, é a minha cidade natal e é a minha raiz - vim descobrir Lisboa. Gosto muito de descobrir cidades, locais, e quis descobrir Lisboa. O Porto está feito, já fiz essa cadeira. Mas continuo a ir com um enorme prazer ao Porto. É uma descoberta permanente - a agora os meus filhos estão cá. A Joana nasceu em Vancouver mas são todos de Lisboa.

É aqui a vida familiar?

A vida de todos os dias. Mas adoro ir ao Porto porque reconheço coisas.

O quê?

Reconheço sítios da infância, vejo o que mudou e o que não mudou, lembro-me de mim naquelas circunstâncias, lembro-me de apanhar o elétrico, quando era muito pequenino, sozinho. Lembro-me das paisagens, da Foz, porque morava perto de Serralves. O mar sempre foi uma grande presença, como bom português que sou - enfim, não se pode dizer isto de alguém que nasceu no interior. O nosso amigo Hermínio Monteiro era de uma aldeia Trás-os-Montes e viu o mar pela primeira vez aos doze anos. Contou-me que imaginava o mar cheio de peixes e coisas bonitas quando era garoto. Hoje as viagens são mais fáceis. Gosto imenso do campo mas a presença urbana é muito importante.

Quando viveste fora de Portugal tinhas saudades?

Eu tinha saudades mas penso que só as senti mais quando voltei.

Explica lá isso.

Havia aquela história do tipo que vai no comboio e "ai que sede que eu tenho, que sede que eu tenho," toda a gente desesperada com aquela coisa, depois vão-lhe buscar água e ele diz "ai que sede que eu tinha". E passa o resto da viagem a dizer isso.

Não tinhas noção das saudades?

Eu tinha saudades mas estive a viver outras coisas. Fiz um exercício ativo em relação à língua portuguesa, de não esquecer a minha língua, de não esquecer Portugal. Até fiz canções como o Porto Porto, depois há uma sequela que é O Porto aqui tão perto, em que falo especificamente da minha cidade, coisas jocosas. Tenho consciência de que isso foi um exercício ativo de "eu sou português mesmo e quero escrever". Tinha tido um bloqueio em relação a escrever, quando comecei a escrever canções.

Um bloqueio de quê?

Estava em França ou ainda em Genebra, e não conseguia escrever de uma maneira pessoal em português. Há quatro canções dos Sobreviventes [1971] que tiveram letra primeiro em francês. As letras em português não têm nada a ver, foi só a matriz da música. Daí eu não criticar de uma maneira absoluta todos aqueles que dizem que não conseguem escrever em português. Acho que é mesmo de ultrapassar.

E fizeste um esforço para recuperar?

Não, de repente abriu-se ali um dique, ajudado por alguns químicos. E depois tornou-se uma fala pessoal. Tive nitidamente consciência de que era uma maneira de não perder a minha ligação a Portugal. Quando voltei, encontrei essa ligação com um prazer redobrado. Eu não podia vir a Portugal. Aliás o começo do Porto Porto diz - "vindo desde Vigo ao Porto sem mala nem passaporte, o comboio era tão velho que o fumo cheirava a morte".

Partiste em 1965 e portanto o que encontraste em 1974 não era só uma questão de liberdade, era um Portugal diferente.

Para já, era um Portugal libertado, mas ainda era muito atávico. A ascendência da liberdade foi muito súbita e não se pode assimilar isso, nos valores de um povo, de um dia para o outro. Havia muitas ingenuidades, muitas contradições - ainda há. Eu tive-as, embora tenha a consciência de ter sempre um pezinho atrás. Voltei logo a seguir ao 25 de Abril e depois regressei a Vancouver porque estava lá com um grupo de teatro e a minha filha nasceu a seguir, e voltei em setembro. Mas nunca acreditei naquele cliché das conquistas irreversíveis da revolução. Eu tinha tido esse choque quando estive imerso no Maio de 68, achava que ia tudo ser diferente e de repente a direita acorda, o De Gaulle acorda e percebi: a História não se faz assim. São passos à frente, passos atrás, etc. Tive plena consciência disso em relação ao 25 de Abril, ui, não vai ser assim tão fácil, vamos lá ver.

E esse tempo foi bom?

Foi, mas foi um tempo precário, por essência. Era essa história de ir cantar em condições precárias, de que o próprio Zeca se queixava muito, embora ele tivesse uma atitude também muito contraditória em relação a isso, porque ao mesmo tempo sentia que, como figura emblemática, tinha que acudir a todos os fogos. Nos discos, ele tinha orquestrações que podiam ser poucos instrumentos mas eram super-cuidadas. Ele sentia sempre "só falta termos uma cenoura em vez de um microfone". Não sei se era esta a imagem mas podia ser.

Hoje o teu Portugal é a Nação Valente do "não quero ver-te endividada só com promessas por morada". Foram uns anos assim?

Foram e são. Nós estamos endividados, ainda estamos, e esquecemos depressa. Agora já os bancos estão a dar crédito à maluca.

E as pessoas estão a ir ao crédito à maluca?

Estão a ir ao crédito à maluca porque nós somos assim. Nós estamos endividados ainda. Não quer dizer que não se ouse, mas ousar a outros níveis, a nível empresarial, a nível criativo, a nível artístico. Não acho que estejamos nada perdidos, acho que temos gente. Mas há sempre uma massa cinzentona e que não vai

Não é uma massa cinzenta, é uma massa cinzentona?

Isso é interessante, tenho de fazer uma canção sobre isso.

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