"Se alguém quiser vendo o gado todo"

Pastores estão desesperados. A seca e os incêndios fizeram desaparecer o verde que envolvia as aldeias serranas, onde o gado fica nos meses de inverno. Milhares de cabeças morreram, outras estão em risco porque não têm o que comer
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De cajado encostado ao peito, olhar fixo no horizonte, Carlos Santos admite que "se alguém quisesse comprar as cabras, vendia-as". Pastor na serra da Estrela há mais de 50 anos, quase tantos quantos os que leva de vida, equaciona abandonar a pastorícia. Um pastor não se queixa. Passa os dias longe de tudo e a parca reforma não o desanima. Mas agora a realidade é bem diferente. A seca extrema e os incêndios que devastaram a região neste verão, com os do último fim de semana, nos quais morreram mais de cinco mil ovelhas só na zona da serra da Estrela, está a levar aos desespero os pastores, que não têm o que dar de comer aos animais nem possibilidade para comprar, a quem ainda têm. Milhares de animais morreram, outros morrem à fome e abortam nas suas longas caminhadas à procura de alimento.

O número de cabeças perdidas ainda não está contabilizado e o ministro da agricultura, apesar de já ter afirmado que vai haver verbas para os pastores e medidas para compensar os produtores, não garantiu para quando essa ajuda. Na serra, o receio é que chegue tarde demais. Os pastores não sabem o que fazer para manter o gado que o fogo não levou.

A falta de chuva na primavera e no verão não alimentou os campos semeados de aveia ou milho para alimentar o gado. Chegou setembro e as charcas secaram, obrigando o gado a percorrer grandes distâncias para beber água. Os incêndios dizimaram o verde que envolvia as aldeias no sopé da Estrela, onde o gado permanece nos meses de inverno. O fogo não poupou forragens guardadas, a grande maioria em armazéns ou garagens, para manter os rebanhos nos meses mais frio.

A transumância - o deslocamento sazonal dos rebanhos serranos da Estrela e da Gardunha no final do verão para os locais mais baixos durante os meses de outono e inverno - foi excecionalmente adiado para finais de outubro. Com as temperaturas baixas, os pastores estão a regressar às aldeias onde agora fazem contas à vida.

Não há memória de um ano assim. "De seca sim, mas com isto dos incêndios não", diz Nelson Reis, de 32 anos e com 400 cabras à sua guarda. "A maioria estão prenhas e não estão a dar leite. Não sei como vai ser para alimentarem as crias." As cabras abortaram, em número fora do habitual, pela ansiedade vivida nos incêndios e por não conseguirem acompanhar o gado que caminha por estes penedos e terra queimada para se alimentar. "Temos de as alimentar com pasto durante uns poucos meses. Mas ao preço que o pasto está..." As cabras que estão a dar leite, estão a perder rendimento, explica. "Um animal alimentado a feno não é o mesmo se andar a comer verdura ou a pastar nos campos. Claro que dá menos leite."

Os pastores da serra da Estrela estão a ser ajudados por fornecedores mais sensibilizados ou por movimentos cívicos. A ajuda popular não dá sinais de indiferença. Há 15 dias, a Feira das Tradições, em Cortes do Meio, Covilhã, reuniu 1014 euros de donativos para a compra de forragens. Alguns produtores de queijo estão a adiantar pagamentos para que os pastores possam comprar alimento e assim não abandonarem a atividade como alguns ameaçam.

"Tenho sido contactado por outros colegas pastores que procuram entregar o gado. Eu respondo para terem paciência, que a chuva virá. Há por aqui muito desespero", diz ao DN Pedro Cabecinha. Com 32 anos, pastor desde os 14 em Seia, Cabecinha comprou na quinta-feira 14 toneladas de maçãs para dar às cerca de 400 cabras que tem à sua guarda. Gastou cerca de mil euros. Precisa também de feno, que está a 11 cêntimos o quilo. Um fardo, que pesa cerca de 400 kg, chega a custar 45 euros. As forragens são compradas em Espanha e França, porque em Portugal o tempo não ajudou ao desenvolvimento das sementeiras feitas na primavera. "Um fardo não chega para um dia. Os preços de mercado estão muito altos, qualquer dia é melhor passar a alimentar as minhas cabras a ração", lamenta.

A Ordem dos Veterinários apelou nesta semana à doação de palha e feno para os animais sobreviventes nas áreas dos últimos incêndios na região centro, considerando a situação como "catastrófica" e "muito pior" do que a verificada em Pedrógão Grande. De acordo com o bastonário, Jorge Cid, à Ordem têm chegado, através dos veterinários e entidades locais, inúmeros "apelos dramáticos de pessoas que perderam muitos animais", estimando que cerca de 80% dos produtores perderam animais na zona centro, sobretudo de pequenas explorações familiares. "Os produtores têm pedido se, por favor, podemos arranjar feno e palha para alimentar animais, porque não têm nada para comer. Temos conseguido arranjar água com alguma dificuldade, mas a parte alimentar tem sido muito difícil", destacou, acrescentando que "a resposta das autoridades tem a burocracia comum a estas situações" e é preciso agir já.

A Oliveira do Hospital e Lousã chegaram nesta semana dois camiões com 40 toneladas de alimentação, adquirido pela Ordem. E o apelo do bastonário chegou mesmo em tom de desespero: "Se alguém tiver fenos e palhas, que nos contacte para nos dirigirmos aos locais que consideramos prioritários. E há muitos."

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