"Se a família está há muito num lugar, temos uma responsabilidade"

Almoço com João Cortez de Lobão, produtor de azeite na Herdade de Maria da Guarda
Publicado a
Atualizado a

Amanhã logo pela manhã, João Cortez de Lobão, Maria, os oito filhos e a família alargada reúnem-se para uma missa na capela lá de casa, na Estrela. É ali que começam os festejos da época, com um postal vivo de Natal que se prolonga até dia 25 e daí se desloca para o Alentejo, onde a família fica reunida até chegar o ano novo. "O centro gravitacional da família passa a estar lá. É muito giro vê-los juntos, o meu filho de 27 e o de 5 a conversarem e a rirem à gargalhada, a cumplicidade dá um quentinho no coração..."

Há de usar a expressão noutras vezes em que se refere à família, onde tem a sua pedra basilar, na vida que já fez e refez por três vezes. Agora, acumula um pouco de cada uma das vidas passadas, mas é à produção de azeite em Serpa que dá o papel principal, ainda que, como diz, já só seja dono. "Hoje faço mais perguntas e tomo menos decisões, tenho a melhor parte e uma equipa de quatro diretores é que gere no dia-a-dia. Se um dia os meus filhos quiserem manter-se apenas proprietários, sem trabalhar ali, poderão fazê-lo porque o modelo está feito e funciona." Sobretudo agora que a empresa voltou a ser rentável e criadora de emprego, João considera que a empresa tem de ter gestão profissional, isso é prioritário, ainda que tenha herdado o desejo do pai de que a propriedade, que está na família há mais de 300 anos, mantenha essa ligação.

Penúltimo de seis irmãos, João Cortez de Lobão assumiu há uma década a Herdade de Maria da Guarda, respondendo ao repto do pai: ou um dos descendentes passava a ocupar-se dela ou teria de ser vendida. Avançou quando nenhum dos irmãos quis trocar a profissão pelo que viam como um risco demasiado grande. "Não está provado que a agricultura não seja rentável mas eu podia ter tido azar... foi preciso algum atrevimento, ousadia e autoconfiança para assumir este negócio. Mas não tenho medo do risco, acho que pior é o medo do risco, que nos leva a fugir dos desafios, e avancei. O pai morreu neste ano, aos 96, e creio que pacificado pela continuidade."

Há dez anos, a propriedade tinha 400 hectares e dois trabalhadores. João deixou tudo para trás, aplicou-lhe um investimento de 15 milhões de euros, incluindo a construção de um lagar, comprou as partes dos irmãos e arregaçou as mangas. Agora tem 35 empregados e os 1,3 milhões de oliveiras plantadas nos atuais cerca de 700 hectares - "estou a adquirir mais 100", revela, num novo investimento de cinco milhões. Produziu duas mil toneladas de azeite (o que o põe no top dos maiores produtores portugueses). A faturação, que no ano passado foi de oito milhões de euros, tem sido reinvestida em melhoramentos e expansão.

Mas esta é só a história de uma das mais recentes vidas de João. Sentados à mesa da Pescaria, onde recebe o tratamento que se dá a um primo que ficamos sempre contentes de ver aparecer, a incansável Fátima vem sugerir-nos um pregado fresquíssimo e de bom tamanho para partilharmos. Aceitamos a proposta e os legumes que acompanham, pedimos um jarro de vinho da casa e arrancamos com a conversa enquanto nos preparamos para o almoço com o pão fresco e torrado e as azeitonas que já nos esperavam na mesa.

"Às vezes tenho saudades do jornalismo, foi uma altura muito gira da minha vida. Mas isto é como ser feliz na casa da avó e querer ir viver para lá, as coisas não são repetíveis." Formado em Economia, essa foi a sua primeira incursão profissional, numa altura em que o jornalismo económico estava a nascer, e foi um azar que o empurrou para os jornais. Estava a acabar o curso e já com um convite para um banco quando foi chamado para a recruta e acabou por perder o lugar nos seis meses que passou na tropa em Cascais. Porque queria ganhar um salário e casar-se, aceitou o desafio de um colega de curso para escrever para uma newsletter, a Inforbolsa. Daí a pouco passava daí para o Tempo Económico, para o Semanário e o Expresso, e do que seria um ano empatado à espera de emprego no banco fez vida. "Esqueci tudo o resto, porque adorava a correria, estar no centro de tudo, conhecer pessoas completamente diferentes, o tipo de vida que o jornalismo me dava. Ao fim de dez anos, como editor do suplemento de Economia do Expresso, achei que para me manter na profissão ia ter de me tornar generalista - e não queria. Então decidi ir para os Estados Unidos tirar um curso."

É assim que sempre age: quando algo precipita uma mudança, avança sem medo. Nessa altura, no final da década de 1990, tinha quatro filhos e mudou-se de armas e bagagens. Em paralelo com a New York University, começou a trabalhar num banco nas Torres Gémeas, a convite de um gestor de fundos americano que entrevistara anos antes. Acabou por ficar apenas um ano e meio "porque queria que os meus filhos conhecessem e sentissem as suas raízes - um português dá-se bem em qualquer parte do mundo desde que saiba onde está a sua âncora, senão será sempre estrangeirado".

Diz que foi "uma decisão de princípio" que o fez deixar os Estados Unidos, mesmo vindo ganhar menos. Regressa a Lisboa com um convite do BCP, que precisava de alguém "para pôr no topo a corretagem", única área do banco que não estava em primeiro lugar. Ficou até decidir mais uma vez largar a segurança da carreira que construíra na banca para abraçar a agricultura. "Comecei a 1 de dezembro de 2006, é simbólico: foi a minha restauração de independência."

Brindamos "às coisas boas da vida" com o vinho fresco e leve da casa, que Fátima nos leva à mesa num jarrinho. João conta-me que a propriedade original da família em Serpa era muito maior, chegava a dois mil hectares. "O meu objetivo é chegar no máximo aos mil. Com a estrutura que tenho não dá para mais, senão torno-me uma multinacional e não quero criar esse tipo de problema aos meus filhos." De resto, garante que não trabalha para ser o maior, nem sequer o mais lucrativo. "Quando empresas acham que é só o lucro que importa, morrem no dia em que não o têm. O que quero é ser o mais eficiente, fazer azeite de primeira qualidade com o preço mais baixo. E isso consigo, mesmo porque somos muito eficientes na apanha - sendo uma plantação intensiva, é toda feita com máquina. Sofro um pouco por ter sido o primeiro português a fazer tanto olival em sebe, porque na agricultura as experiências são feitas aos olhos de todos. Mas tenho conseguido cumprir o que me propus, que é criar valor - para o investidor, para os colaboradores, para a comunidade."

Como sobreviveu no mundo das finanças a pensar assim? Diz que uma coisa não implica a outra e a maior prova é que não investe exclusivamente em empresas que dão lucro. "Eu criei um fundo em Inglaterra que investe a maioria dos recursos em empresas que dão pouco lucro mas criam valor. A Amazon é assim, quase não dá dividendos, mas cria mecanismos para facilitar a entrega ao cliente, cria emprego e vale muito."

Hoje, com 54 anos, João vive entre Lisboa, onde está a família, Serpa, onde tem a unidade de produção, e Londres, onde tem casa em Saint John"s Wood ("um bairro de judeus, onde tenho a dois passos o metro, o hospital e a igreja, portanto, tudo o que é essencial") e onde abriu uma gestora de patrimónios que há dois anos o fez regressar à gestão de ativos - "agora já o faço com uma perna às costas, não preciso de estar todos os dias no trading". Diz que vai na terceira vida, porque foi jornalista, gestor financeiro e agricultor - a verdade é que já viveu muitas mais. E é visível que a atual lhe enche a alma.

Com o peixe a cumprir todos os elogios que Fátima lhe fez, João conta-me que quando trocou a direção da corretora do BCP pela agricultura houve quem lhe perguntasse se estava com uma crise de identidade. "Foi uma decisão que me fez ganhar muita independência, mas também trazia grande risco. Eu estava no banco, ganhava muito bem, tinha estabilidade, uma família grande. Mas saí em vésperas da crise. É engraçado, as decisões que tomei na vida têm sempre menos que ver com a questão económica e mais com princípios, mas acabaram por revelar-se proveitosas. Por exemplo, quando decidi voltar de Nova Iorque meses antes dos atentados. Essa decisão se calhar fez-me passar ao lado de uma coisa desagradável. E esta coisa de o meu pai dizer que alguém tinha de assumir o risco da propriedade também foi determinante. Virei-me para a agricultura mesmo antes de rebentar a crise... era um negócio pouco seguro, com risco e pelo menos três anos sem receitas e de repente queriam cortar-me as linhas de financiamento, o fisco vinha questionar as contas... Nessa altura tive uma série de contrariedades que me puseram à prova."

A serenidade vem-lhe em grande parte da fé, que lhe dá a certeza de que todos temos "alguma missão na vida" e na qual encontra forças para enfrentar os momentos mais pesados. Na mesma altura em que praticamente vivia em Serpa - "de início, tinha de estar presente, porque a melhor forma de ensinar é ser exemplo, mas também tive de dar autonomia aos meus colaboradores; e à medida que fui passando responsabilidade dentro do programa que eu tinha estabelecido, eles perceberam que tinham de encontrar soluções" -, descobriu-se que a segunda filha mais nova, ainda bebé, tinha leucemia. Hoje, Marta tem 11 anos e uma vida normal. João prefere não se alongar por aí. Recorda apenas que "caiu tudo ao mesmo tempo e nessa altura cheguei a pensar: mas porque é que eu fui sair do banco?... Mas depois só me lembrava do Churchill, que dizia que quando nos vemos no meio do fogo o melhor é continuar a correr." É por isso que acredita que sem fé não se anda para a frente. "A vida tem de ser vista com plenitude, é moldável entre sonho e realidade, vida e morte, amor e desencanto, por isso não podemos ir-nos abaixo com um dos lados. Não há alegria sem cruz." Exemplifica com a viagem que fez a Paris e no regresso o avião foi desviado para Faro por causa da tempestade Ana. "Na manhã seguinte, estava a tomar o pequeno-almoço com a família debaixo de sol, com um dia lindo, e entendi que se não fosse o desvio não teria tido esse tempo de qualidade."

Diz que nas lutas que travou o que aprendeu na tropa também o ajudou - "fez-me conhecer os meus limites físicos, aprender a não me ir abaixo, se temos um sonho andamos para a frente, por isso é tão importante estarmos integrados num sonho". E recorda a resposta de um varredor de Cabo Canaveral a Kennedy quando o antigo presidente dos Estados Unidos lhe perguntou o que fazia: "Estou a ajudar a pôr o homem na Lua." Quanto a João, o seu sonho "era ajudar esta propriedade a tornar-se uma referência, que produzisse azeite de primeira qualidade a preço imbatível." E à noite, quando andava pelos campos a tratar da rega ou a fazer as tarefas mais duras, sabia que o que estava a fazer era "a trabalhar num sonho".

O telefone, que esteve sempre em modo silêncio mas se iluminou em tentativas de contacto a cada dez minutos, avisa que esta chamada vem de casa e ponho-o à vontade para atender. O assunto, tratado rapidamente e depois encaminhado para a mulher, Maria - "a minha âncora" -, sugere-lhe uma explicação. "Às vezes gastamos 80% do tempo com duas ou três pessoas que são problemáticas mas absolutamente essenciais. Temos de ter tempo para isso." Não é lá de casa que fala, mas de quem emprega, que vê quase como extensão da família. "Não gosto que se use o termo recursos humanos, porque é de pessoas que se trata, não de equipamento. Eu conheço-as, sei se são casadas, se têm filhos, se estão com problemas." É assim porque tem o coração e as raízes no Alentejo, onde está o seu sonho mas também "a responsabilidade social". "Se a família está há muito num lugar, temos responsabilidade, não podemos abandonar tudo quando deixa de ser bom." E por isso diz que enquanto houver desemprego em Serpa há de sempre contratar pessoas ali da terra, mesmo que lhe saia mais caro. "São as pessoas com quem nos cruzamos e que queremos acarinhar."

Não são os únicos que a família acarinha. Além do trabalho social a que Maria dedica muito de si, na Igreja de Santa Isabel, todos os anos doam milhares de litros de azeite. "Pedem-nos da Caritas, de creches, de lares, de paróquias... Nunca recusamos um pedido."

De resto, a esmagadora maioria da produção da Herdade de Maria da Guarda vai para fora. Já teve uma marca - a Lagaretta, nomeada a partir de uma pedra dos tempos dos romanos encontrada na propriedade - mas diz que não compensa. "Prefiro vender a granel, porque só os brasileiros e os angolanos aceitam que temos o melhor azeite do mundo - era o azeite da Lusitânia que servia as elites romanas, o mais caro - mas são mercados muito voláteis. Com o que vendia nos Estados Unidos (onde hoje o seu azeite é apresentado como biológico), na China, na Europa ganhava zero. Então optei pelo mais simples, como pedia a minha veia alentejana." Vende sobretudo a Itália, onde os compradores são mais exigentes nas provas, nas análises, nas críticas. "Itália produz 400 milhões de quilos e Portugal 100 milhões, e eles vêm buscar o máximo que podem para misturar com o deles." Porque começamos a colheita mais cedo - "amadurecemos a azeitona 15 dias antes do resto do mundo" - temos vantagem. Pergunto-lhe se a seca não prejudicou a colheita. Confessa que até tem ajudado. A razão é simples. "O maior produtor mundial de azeitona para azeite é Espanha, onde os olivais são de sequeiro, não são regados como o meu - e a água que temos do Alqueva dá para aguentar uns três anos. Por isso os espanhóis estão a produzir menos e os preços estão muito altos - entre 3,5 e 4 euros o quilo, o dobro de quando eu comecei. A dois euros eu sou rentável, a quatro euros consigo reinvestir."

Admite que se a seca extrema se mantiver pode ser preocupante, mas recusa entrar em pânico. "Os portugueses são assim. Já passámos por tanto e ainda cá estamos... Temos uma perspetiva muito menos stressante de ver as coisas e por isso se largarmos um português em qualquer lado ele safa-se - outros povos não são assim. O "fora da caixa" que os americanos descobriram agora já nós temos há séculos, é o desenrasca: arregaçamos as mangas e resolvemos." Para já, com a tesouraria suficientemente folgada para ir amortizando o crédito inicial e poder reinvestir sem novo financiamento sempre que aparece uma oportunidade, o plano de João Cortez de Lobão é "continuar a criar valor" numa terra que já faz parte do ADN da família. "Todos os meus filhos têm imenso gosto e orgulho na herdade, sentem a responsabilidade, gostam muito do projeto agrícola e têm a ligação à terra. Do mais novo, de 5 anos, ao mais velho, de 27 (a viver em Boston, onde escreve sobre tecnologia num blog de Silicon Valley enquanto se candidata à universidade), todos querem lá ir nas férias, ao fim de semana. Também porque arranjei o monte para terem possibilidade de levar amigos, a casa é confortável, há conversa, cartas, piscina, e eles criam ali memórias quentinhas para guardar." Mas insiste: a terra será sempre deles, mas a gestão tem de ser profissional, não "fruto de herança e depois ficarem a viver à sombra da bananeira". É que, apesar de ter um orgulho imenso e um amor desmedido pelos oito filhos, defende que "o mérito é a única forma de perpetuar uma responsabilidade."

A tarde já se faz longa e o pregado foi-se há muito. Eu dispenso sobremesa e para o acompanhar no arroz-doce peço um café. Pergunto-lhe como se sustenta uma família tão grande. Garante que o dinheiro tem importância mas está longe de ser fundamental - entendeu-o na sua infância, quando a família perdeu tudo no 25 de Abril, mas "não se desagregou porque a âncora familiar era muito forte e ajudava nos momentos mais difíceis, em que o dinheiro não chegava até ao fim do mês." O truque é "ser feliz". Mas algum conforto financeiro ajuda certamente. "Tenho as receitas da área financeira em Inglaterra, que me permitem viver folgadamente sem tirar dinheiro da sociedade agrícola. Mas o mais importante na família é o amor. Há quem pense que para ter quatro ou cinco filhos é preciso sacrifícios, mas a capacidade de amar é que é diferente. Eu lembro-me de ter o primeiro filho e, com a minha mentalidade economicista, pensar que nunca poderia amar um segundo tanto quanto o primeiro. E depois eles foram nascendo e fiquei perplexo com a capacidade de multiplicar o sentimento."

Acompanho-o no café - o meu segundo - e já quase nas despedidas conta-me que se sentiu especialmente orgulhoso quando na escola perguntaram a um dos filhos se ele queria ser como Ronaldo ou Schumacker. "Ele tinha 8 anos e disse que queria ser normal como o pai. Para ele ser normal é ser casado, ter filhos, ser estável e feliz." E para João Cortez de Lobão, a maior conquista é essa: conseguir cumprir "um programa de vida de procura da felicidade".

A Pescaria

Pão, manteiga, azeitonas

Água

1 jarro de vinho branco

Pregado escalado com legumes

Arroz-doce

3 cafés

Total: 53,25 euros

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt