"Saúde? Os cidadãos pedem que os políticos se entendam"
O site da Convenção Nacional da Saúde tinha uma secção para receber contributos dos cidadãos. O que querem afinal os utentes do seu sistema de saúde?
Foi um dos aspetos em que foram superadas as nossas expectativas, recebemos centenas de contributos, que posso dividir em dois grupos: o dos profissionais de saúde e outro grande grupo dos cidadãos em geral. Claro que os contributos são diferentes. Os dos profissionais são de quem conhece bem o sistema, com um discurso mais especializado, mais concreto, muitos deles focados nos problemas concretos das suas áreas, e também muitos deles na expectativa de ter reconhecimento, de ter melhores condições de trabalho. Do lado dos cidadãos há também uma expectativa grande, e curiosamente ao mesmo tempo que querem que o sistema de saúde fique melhor e perdure no tempo, pedem de uma forma geral que os políticos se entendam. Ou seja, eu acho que os cidadãos se consciencializaram que têm um sistema de saúde e que ele pode estar em risco, por falta de sustentabilidade económica, por falta de estruturação, etc. Quando o Presidente da República apelou há um ano a um pacto para saúde expressou o sentimento da sociedade civil. É interessante perceber que os cidadãos secundam o Presidente neste desiderato que é que os políticos se entendam e que possam fazer entre eles um acordo, um consenso, no sentido de deixarem cair algumas das suas divergências a favor de um interesse muito maior.
Portanto, a ideia é ter acordos a longo prazo e não limitados a uma legislatura.
Exatamente, que se olhe a longo prazo, que se olhe para o o futuro, a fim de um desígnio maior, que é o nosso sistema de saúde, que é um dos maiores bens que uma sociedade pode ter. Portanto o povo pede isso aos políticos, que se entendam. E também acredito que os políticos estão todos convencidos de uma coisa, que é querer manter e melhorar o nosso serviço nacional de saúde.
Além dessas propostas mais genéricas, há outras mais fechadas vindas dos cidadãos?
Como disse, recebemos centenas de contributos, temos uma equipa de redatores a tentar reunir as ideias. Aliás, sairá desta convenção um documento que não vincula ninguém, será um resumo das ideias e opiniões que vão surgindo nestes debates, os únicos responsáveis poderão ser os bastonários, que terão uma palavra final a dizer. Mas é claramente um documento generalista, mais simbólico do que outra coisa, que aponta caminhos. Mas outro produto final, que acho ainda mais importante, foi este sinal que o setor deu ao país, um setor que tem múltiplas divergências, muitas vezes interesses conflituantes, foi capaz de dar um passo para se juntar todo num mesmo fórum e reunirem-se, dizerem "nós também queremos que esteja assegurada a sobrevivência do SNS". Ao fazerem isso deram um sinal de que também estão dispostos a abdicar de algumas das suas divergências e perfilhar princípios comuns para garantir a sustentabilidade do sistema de saúde.
Como foi esse trabalho de conciliar, por exemplo, médicos, enfermeiros, farmacêuticos, quando sabemos que muitas vezes estão em conflito por questões de competências?
Este foi outro dos pontos em que as nossas expectativas foram superadas. Eu sempre acreditei que era possível, como acredito que é possível haver consensos para preparar o tal pacto de regime para a saúde. Mas tenho os pés na terra, sei que é difícil conciliar pessoas e instituições que têm interesses que muitas vezes conflituam entre si, mas animou-nos sempre a todos que trabalhámos na organização desta convenção uma coisa fundamental, a consciência cívica de todos nós. Nós portugueses, depois das guerras todas, daquilo que nos separa, acabamos por ter uma consciência do interesse público. E acho que neste aspeto assim como António Arnaut deu um primeiro passo para termos o Serviço Nacional de Saúde e depois os múltiplos governos e os próprios profissionais de saúde fizeram um grande esforço para chegar até aqui com o SNS, hoje todos se consciencializaram que têm de dar o seu contributo e portanto fizeram esse esforço para se sentarem todos no mesmo fórum para discutir o futuro e salvaguardar o Serviço Nacional de Saúde
E já sabe algumas das coisas em que podem estar de acordo e vão ser apresentadas a Marcelo Rebelo de Sousa?
Queria deixar espaço para o debate. Já recebemos muitos contributos por via digital, mas vamos ter muitos mais vivamente, convidámos pessoas bem formadas, com muita experiência no setor, temos 160 oradores, 90 instituições e mais de mil inscritos, portanto não queria condicionar muito. Mas queria passar esta mensagem, que as divergências sejam discutidas noutros fóruns, que respeitemos o futuro. Que fique bem claro, as críticas têm o sítio próprio e eu que já passei pelo governo, tenho muito respeito por quem governa na área da saúde, seja de que partido for, porque todos os dias fazem pequenos milagres. Seja por escassez de recursos, seja por problemas de organização a que ainda falta responder, eu sei o que custa e o difícil que é conciliar os tais interessantes conflituantes. Neste fórum não vamos criticar se isto ao aquilo foi bem decidido ou se falta decidir sobre isto ou aquilo, vamos é todos trabalhar para criar as condições básicas para que se possa ter na próxima década um serviço de saúde melhor do que o que temos hoje e não um serviço de saúde afundado.
O ministro não vai, então, sentir as orelhas a arder nestes dois dias?
O meu apelo é que não. Acho que é legítimo e saudável que as pessoas que tenham aspirações façam as suas criticas, é próprio da democracia, mas tem de ser discutido num fórum próprio, mas este fórum é diferente, é para centrar no que todos queremos. O ministro é uma peça importante neste processo, porque é ele que acorda todos os dias e tem milhares de problemas à frente e sabe que não tem recursos para todos eles.
Se estivesse no lugar de Adalberto Campos Fernandes teria feito alguma coisa de forma diferente?
Todos nós somos diferentes e tomaríamos decisões diferentes, uns dias concordamos com umas coisas, noutros discordamos. Discordo de algumas coisas, nem sequer concordo com esta solução governativa, era do outro lado...
Foi mesmo deposto por ela [foi secretário de Estado da Saúde no segundo governo de Passos Coelho]...
Fui deposto por ela, portanto não me revejo nesta solução governativa. Mas tenho a seriedade de assumir que está a ser feito um grande esforço para resolver todos os problemas que o país tem, todos os dias são conseguidos pequenos milagres para conseguir conciliar todas as divergências, vontades, contra vontades, é um esforço titânico. E se formos sérios temos de respeitar esse esforço. As pessoas não são imensas e temos de ter a noção de que quem está, está a dar o seu melhor. O nosso contributo nesta fase é o de olhar para os problemas do futuro e não para os problemas de hoje e reunir aqui compromissos, que se calhar não são assim tão complicados. Vou dar-lhe um exemplo: hoje há decisões que são estratégicas e que não se compadecem com decisões a um ano, com o orçamento de Estado para este ano. A ideia não é minha mas eu subscrevo inteiramente a hipótese de haver alguns orçamentos plurianuais para algumas decisões estratégicas. Na área do medicamento isso é mais do que evidente, nas carreiras profissionais a mesma coisa e noutras áreas de políticas de saúde. Há um conjunto não muito vasto mas de grandes grupos de decisões que são estratégicas mas em que esquerda e direita poderão estar de acordo, porque eu sei que há uma coisa que os junta: que temos um SNS que é dos melhores do mundo e temos de o defender.
Essa ideia de orçamentos plurianuais faz parte de uma proposta para uma Lei de Base da Saúde de que é subscritor, apresentada há poucas semanas, onde se falava também do papel do setor privado e social. Isso também vai ser discutido na convenção?
Temos nove conferências que abordam temas que consideramos estratégicos para o futuro da saúde, e temos uma precisamente sobre esse tema. Essa é uma das grandes riquezas do sistema que temos hoje. Temos um excelente Serviço Nacional de Saúde, mas a prestação de cuidados só pelo setor público não é completa, a existência de um setor privado e um setor social que têm demonstrado responsabilidade e sentido cívico e que cada vez mais melhoram a qualidade e eficiência, isso é que dá a riqueza de no nosso país haver um sistema em que qualquer português, independentemente da sua condição social, económica ou geográfica, quando tem uma doença grave, por exemplo na oncologia, sabe que tem acesso aos melhores tratamentos que existem hoje no mundo, em medicamentos, cirurgias, etc. O que temos é de manter isto e melhorar. Esta grande conquista tem precisamente a ver com a complementaridade do sistema. Agora, temos o melhor dos mundos? Não temos, há imensos desafios, imensos problemas para resolver. Mas quando olhamos para outros países do mundo, e estou a falar de países com grande desenvolvimento, estão muito atrás de nós. Todos nós temos obrigação de estimar esta conquista que a Democracia nos deu.
Falou em oncologia, surgiram recentemente notícias de problemas nos tratamentos na ala pediátrica do São João, além de outros casos de falta de meios. Como se trava esta degradação aparente do SNS e onde estaremos daqui a dez anos?
Essas perguntas não têm uma resposta fácil, é por isso que organizámos esta convenção. Sabemos que os recursos têm os seus limites e faço um apelo para que haja uma postura construtiva, porque é por esse caminho que vamos resolver essas questões, a falta de recursos, de estruturas que ainda não estão devidamente organizadas. Temos de ter a noção que o mundo à nossa volta muda todos os dias, e nós também mudamos, o SNS tem de ter esta postura, todos os dias tem de se adaptar às novas realidades do mundo, todos os dias temos novas tecnologias, mais caras, estão a aparecer medicamentos disruptivos que curam doenças que até agora não eram curáveis.
Ou seja, há boas notícias mas que colocam pressão sobre o sistema.
m dos nosso temas é o desenvolvimento demográfico, a nossa população está a ficar envelhecida, mais consumidora de cuidados de saúde. Hoje conseguimos que as pessoas vivam mais tempo, grande conquista, mas isso tem o outro lado, custa muito dinheiro. Temos de reorganizar o sistema, é como nas equipas de futebol, recuar, reorganizar, para depois avançar.
E quem deve ser o treinador dessa equipa, o ministro da Saúde ou o ministro das Finanças?
Esta equipa não pode ter um treinador, tem de ter um espírito que preside a tudo isto, que temos um bom sistema de saúde e não o podemos perder. Da discussão vai nascer a solução, não há um mágico ou um líder que a tenha. São essas ideias que depois, e aí sim podia dizer que é esse o treinador, serão adotadas por aqueles que amanhã têm a responsabilidade de fazer opções, que estão nos partidos políticos, porque o que os partidos fazem emana da nossa responsabilidade, da nossa cidadania. Eu acho que quem vai ter esse papel agora, na fase seguinte, são os decisores políticos, que em cima das ideias que estamos a criar vão ter tomar uma decisão. Mas nós estamos a facilitar-lhes a vida, estamos a dar-lhes a informação, somos os especialistas que estamos no terreno.
Mas mantendo as metáforas futebolísticas, e também tendo em conta a sua experiência, que já esteve em campo, foi presidente do Infarmed, foi secretário de Estado da Saúde, o ministro das Finanças é um árbitro que puxa demasiado pelo cartão vermelho? Tem demasiada importância na área?
Tem e acho que deve ter sempre, não devemos diabolizar funções, todos somos necessários. Eu sou cirurgião e tenho uma equipa, tenho um anestesista que está sempre a ralhar comigo se eu saio das regras para manter a segurança do doente, tenho a enfermeira instrumentista, etc. Governar um país e governar a saúde é também um trabalho de equipa, temos de ter alguém com as preocupações financeiras e económicas, sabemos que os recursos não são infinitos, temos de ter alguém a acender a luz de alerta. Mas temos também de ter alguém que não tem que ter essa preocupação, que tem que ter em conseguir o mais possível para os doentes. Onde nasce a solução disto? Na confluência das duas forças de forma equilibrada. Às vezes porque acontecem alguns episódios diabolizamos logo o árbitro. Eu acho que não. Voltando ao futebol. O guarda-redes está sempre a chatear os defesas para se posicionarem, mas não é inimigo dos defesas, quer que eles defendam bem e quer que passem a bola para a frente para que os outros marquem golo. Cada um tem funções distintas, mas todos querem o mesmo. E com isto não quero estar a branquear ninguém, nem quero estar a apoiar esta solução governativa. É só porque estou animado de um grande espírito de cidadania. Temos um desafio lançado pelo Presidente da República, neste sentido o que tenho dito é: não vejo dificuldades inultrapassáveis no sistema. Vejo coisas próprias do dia-a-dia, mas não vejo nenhuma incompatibilidade entre as Finanças e a Saúde, as Finanças cumprem o seu papel, fazer com que os recursos cheguem para tudo e para todos. E depois há o emprego do outro, o que governa a Saúde, que é fazer chegar a todos os portugueses o melhor possível. Portanto, todos os dias há um jogo entre os dois, em que uma vez sobrepõe-se mais um, outra vez sobrepõe-se mais o outro.
Já disse mais de uma vez que esta não é a sua solução de governo, mas teve de trabalhar com o ministro, nomeadamente na candidatura à Agência Europeia do Medicamento. Como foi esse trabalho e como é a sua relação com Adalberto Campos Fernandes?
Foi uma relação séria, de empenhamento recíproco, e como lhe disse tenho muito respeito pelo ministro. Sei o que ele passa todos os dias para conseguir resolver todos os problemas que tem em cima da mesa, gerir os diferentes desafios e as exigências, como tenho respeito por este governo. Eu sou português, eles estão a fazer o que podem. Não é minha solução, mas eles não são meus inimigos viscerais. Eu preferia outros, mas não estou revoltado com o mundo. Dito isto, estou disponível, como estive sempre, para soluções que sejam servir a melhoria do país. Na altura das eleições é outra questão, mas quem ganhar terá sempre o meu empenhamento.