Saúde mental num mundo incerto
Não há Saúde sem Saúde Mental
Nunca como neste último ano e meio foi esta máxima da OMS tão sentida e confirmada - desde os profissionais da área aos políticos, passando pelos profissionais da comunicação social - e podendo acrescentar-se que não há doença sem sofrimento mental.
Para esta inusitada atenção contribuíram as primeiras imagens da chegada da pandemia ao mundo ocidental, sendo especialmente impressivas as de Itália e dos EUA, quer da sobrelotação dos hospitais, quer do pânico das pessoas que clamavam por uma qualquer ajuda, aliados ao sentimento de impotência que os profissionais de saúde deixavam transparecer, face à dimensão e ao crescimento descontrolado dos casos.
Acresce que, em especial nos primeiros meses da pandemia, a ameaça à própria vida dos profissionais teve um papel decisivo nos níveis de burnout a que estiveram sujeitos, agravando a sua incapacidade de resposta às situações agudas em geral e para garantir medidas de proteção suficientemente eficazes, o que acentuou a insegurança dos cidadãos.
A saúde mental é um dos três pilares do bem-estar em que assenta a definição de Saúde da OMS. É muito mais do que a ausência de doença e diz respeito a todas as pessoas, e não apenas a quem tem ou teve qualquer problema mental. Por isso teve, nestes últimos vinte e dois meses, uma visibilidade inusitada, quer do ponto de vista individual, quer de Saúde Pública.
Sendo um conceito muito lato, é óbvia a importância dos múltiplos determinantes da saúde mental. Por isso, são necessárias competências específicas, de cuja integração de conhecimentos, base da multidisciplinaridade, resultará a melhor capacidade de avaliação das necessidades e de prestação dos cuidados mais adequados a cada situação.
A perceção de incerteza, falta de controlo e imprevisibilidade
A incerteza perante algo desconhecido, de dúvida crescente sobre a capacidade de pôr cobro a uma pandemia de tais dimensões, causou níveis de ansiedade, por vezes raiando o medo, agravada por sentimentos de perda, de familiares e amigos, vítimas da doença.
Restaram, durante uma boa parte do ano de 2020, a resiliência dos profissionais de saúde - alvo de reconhecimento generalizado - e, por outro lado, o estímulo à investigação, conduzindo ao desenvolvimento de vacinas em vários centros mundiais, num curtíssimo intervalo de tempo.
Esta reação - por um lado de fuga, por outro de luta - à agressão externa para a qual não havia (e não há ainda) armas suficientemente potentes, constituiu uma resposta das sociedades a um stress multidimensional - biológico, psicológico e social - com impacto claro no bem-estar das pessoas, individualmente, nas famílias e nas comunidades, em todos os grupos etários, com particular efeito nos mais vulneráveis, de que se destacam os mais velhos e os mais doentes.
Na fase atual da pandemia, haverá que dar mais atenção aos aspetos mentais do binómio "saúde-doença" com ela relacionados, e alertar para o sofrimento associado com os problemas de saúde em geral. Estes, são sempre potencialmente graves e ameaçadores para quem os tem, afetando os seus próximos e quem deles cuida, formal ou informalmente.
Numa era em que a tecnologia se tornou preponderante, há aspetos que escapam à objetividade das máquinas, por mais sofisticadas ou "inteligentes" que sejam. Por isso, é fundamental alertar a sociedade para que a subjetividade dos problemas de saúde não seja apenas foco de atenção para os serviços especializados de saúde mental, mas para todas as unidades do sistema de saúde, seja no setor público, social ou privado, dos cuidados primários aos continuados.
A avaliação dos resultados em saúde tem de contemplar o impacto na satisfação dos cidadãos, na sua avaliação do bem-estar, da qualidade dos cuidados recebidos e da atenção dos prestadores. Esta preocupação com a subjetividade deve abranger: os utilizadores, as suas famílias e cuidadores, os profissionais - e a sua avaliação deve ser alvo de atenção e ação da parte dos responsáveis.
A Saúde Mental não é feudo de nenhum sector ou área profissional. Por isso, deve estar presente na formação dos diferentes profissionais - na saúde, como em todos os setores que lidam com pessoas, mormente quando em situações de fragilidade. Haverá que contemplar sempre os aspetos das relações interpessoais e do bem-estar, ponderando devidamente cada atitude, medida ou ação, tendo em conta os custos e os benefícios para a pessoa e para a comunidade. Porém, não poderão ignorar-se as inúmeras carências do subsistema da Saúde Mental e que não tem permitido garantir às pessoas com doenças mentais, em particular nas formas mais graves, a atenção e os cuidados de que carecem e a que têm direito.
- É urgente dotar os Serviços de Saúde Mental dos recursos materiais e humanos necessários às suas funções e a sua integração plena na rede de cuidados de saúde. E, também, dotar todos os restantes serviços de saúde, de profissionais com competências próprias para uma deteção precoce de situações de risco, só assim sendo possível vencer o estigma a que ainda hoje estão votados uma parte significativa das pessoas com doença mental.
- De igual forma, será fundamental atender às necessidades das famílias e dos cuidadores, condição indispensável para que estes agregados sócio-emocionais possam cumprir plenamente os seus papéis. Para tal se exige proximidade, acesso e, em especial, integração e disponibilidade, dos vários subsistemas de prestação de cuidados, devendo o estabelecimento de parcerias com os vários atores da sociedade civil ter um papel de enorme relevo.
- A oportunidade a aproveitar da visibilidade atual - em benefício da qualidade dos serviços prestados e do seu impacto na qualidade de vida dos cidadãos e da sua Saúde Mental - será a de conseguir consciencializar os poderes públicos, a todos os níveis, do governamental ao institucional, como também nos setores social e privado, para a importância dos aspetos subjetivos das relações com os cidadãos, porque de respeito pelos Direitos Humanos se trata.
Médico psiquiatra, presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental