Saúde, Defesa e Segurança Nacional

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Atravessamos um momento único na história do mundo e da Europa. Um momento marcado pela pandemia e pela guerra. Em Portugal, a liberdade ultrapassou a longevidade da ditadura, temos um plano de recuperação e resiliência para gerir e fazer acontecer, um novo Governo com maioria Parlamentar, e a vontade férrea de recuperar o tempo de muitos anos perdidos.
Este ciclo foi revelador de que quando estas ameaças se materializam, coloca-se em causa o funcionamento do Estado e a subsistência do indivíduo.

Tudo isto tornou ainda mais proeminente a importância vital de dois pilares que são fundamentais para a resiliência e sobrevivência da nossa comunidade -- saúde pública e defesa nacional. Ficou demonstrado que estas constituem o último reduto credível ao qual podemos recorrer. Em Portugal, paradoxalmente, são precisamente estas áreas que surgem mais descapitalizadas desta crise sanitária que agora é bélica.

Perante estas circunstâncias, a questão que necessita ser equacionada é como podemos priorizar a modernização da saúde e da defesa, potenciando este binómio (aparentemente) improvável para criar impacto e valor sustentável?

Recorde-se que a saúde militar constitui quase um 4.º ramo das forças armadas, ao ser gerido de forma centralizada pelo Estado-Maior-General das Forças Armadas, e o SNS tem uma das maiores parcelas do Orçamento do Estado. Os estudos que existem nas áreas da saúde e da defesa revelam de forma inequívoca que o investimento nas mesmas gera mais-valias e é sustentável. Por exemplo, um estudo britânico revela que cada euro investido em saúde pode chegar a ter um retorno de 14€*; na área da defesa o nível de retorno de investimento é de 1,6€ por cada euro investido, segundo dados da Comissão Europeia**.

Nesta conjuntura cada vez mais determinada pela evolução da ciência e tecnologia, na qual a educação, a investigação e a inovação constituem a base e o veículo da construção das sociedades desenvolvidas, será importante investirmos em iniciativas que são transversais a estas duas áreas, valorizando quer as funções sociais, quer as funções de soberania do Estado.

Desde logo, é imperativo incrementar a valorização e o investimento nos profissionais destas áreas. As pessoas são a pedra angular de qualquer organização.

Falamos também nas lacunas digitais que são comuns à saúde e à defesa, com especial incidência no desígnio da desmaterialização e intervenção à distância, mas também na necessidade de reforço da capacidade e robustez do capital humano e da ciber-segurança e proteção das redes, em especial na área da saúde. As instituições do sistema da saúde podem funcionar como end-users em programas como o EU4Health - um dos principais instrumentos da UE para responder à Covid-19 e que se foca no robustecimento da resiliência dos sistemas de saúde. Uma parceria saúde-defesa poderá também ser importante na prevenção e intervenção rápida em situações como a pandemia ou outras catástrofes naturais.

De resto, o novo ecossistema tecnológico no qual se destaca a emergência da robotização avançada e da inteligência artificial apresenta linhas de investigação, desenvolvimento e investimento que devem ser exploradas na criação da interface entre os universos da saúde e defesa. Em alguns casos poderá tratar-se de capacidades de duplo-uso ou, em alternativa, conhecimento técnico e especializado que pode ser objeto de incorporação em diferentes produtos de elevado valor acrescentado e tecnologia de ponta que terão aplicação em soluções usadas em contextos civis e militares. Esta abordagem de duplo-uso aumenta de escala se aprofundarmos as crescentes competências nacionais noutras áreas como a logística, a inteligência artificial ou nanotecnologias.

O exemplo da robotização na medicina militar, designadamente durante as cirurgias realizadas à distância nas salas de operações instaladas em zonas de conflito, pode ser implementado e alargado para a realização remota de cirurgias para apoiar as populações mais isoladas, seja devido à desertificação do país, ou devido às nossas especificidades insulares.

Tratando-se de capacidades que exigem grandes investimentos iniciais, quer o SNS quer o serviço de saúde militar poderiam ter aqui oportunidades de cooperação conjunta e partilhada, e que podem ser alavancadas através de clusters internacionalizados que temos em Portugal, na área da saúde e da aeronáutica, espaço e defesa, e através de centros de experimentação que já se encontram instalados nas forças armadas e em institutos ligados à academia.

Com efeito, as grandes unidades hospitalares surgem como as principais beneficiárias da robotização, tanto nas áreas clínicas como também nas áreas de apoio e logística. Em 2016, Portugal foi um dos países onde se verificou um maior crescimento da densidade de robôs na indústria (FCT, 2019), no entanto, o estudo Digital Transformation: Shaping the future of European healthcare da Deloitte (2020)*** revela que Portugal ainda não conseguiu dar o salto para a adoção destas tecnologias da indústria 4.0, na área hospitalar. Cumulativamente, a evolução da guerra revela a preponderância dos veículos robotizados e, no caso nacional, estes poderão funcionar como facilitadores de atividades que são comuns às operações realizadas pelas forças armadas nos domínios terrestre, marítimo e aéreo, nas atividades de recolha de informações e reconhecimento, deteção e vigilância, ou no apoio a ações de busca e salvamento.

Neste sentido será vital aprofundar o conceito de parcerias para a inovação, entre a saúde - que constitui um setor de interesse estratégico preconizado na estratégia nacional de inovação tecnológica e empresarial de 2018 - e a defesa, estimulando a base tecnológica e industrial de defesa, através do cruzamento de financiamentos, por exemplo, do Fundo Europeu de Defesa com outras fontes nacionais, e através de programas interdepartamentais, que promovam a investigação e inovação nestes domínios fundamentais para a transformação da nossa economia, e para a soberania nacional, perante a necessidade de nos tornarmos mais independentes de produtos e sistemas fornecidos por empresas estrangeiras.

Finalmente, e numa altura em que as forças armadas adaptaram a sua estrutura orgânica e lançaram uma estratégia para a inovação, seria oportuno o SNS criar uma estrutura idêntica dedicada à transformação e prospetiva que desenvolva os mecanismos de articulação para a inovação com outras entidades.

Esta prevalência que as crises atuais imprimiram à saúde pública e à defesa constitui uma janela de oportunidade para reforçar -- com realismo -- a nossa resiliência e a segurança nacional. Portugal não a deve desperdiçar.


Miguel Guimarães Bastonário da Ordem dos Médicos
Alexandre Pinho Auditor de Defesa Nacional

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