Saudades da Guerra Fria são perigosas
Para quem chegou à idade adulta quando ainda havia Muro de Berlim, como é o meu caso mesmo que à justa, é mais ou menos evidente que, por muito que se fale em regresso da Guerra Fria, as tensões hoje entre os Estados Unidos e aliados e a Rússia têm mais que ver com a reação a uma grande potência a defender os seus interesses regionais do que a fazer frente a uma superpotência a exportar uma ideologia, como acontecia com a URSS.
Henry Kissinger, guru americano da geopolítica que quase centenário faz das análises mais certeiras, lembrou em 2014 que ao fazer a Rússia anexar a Crimeia, que na era soviética tinha sido oferecida pelo Kremlin à Ucrânia, o presidente Vladimir Putin estava a dar um passo que qualquer czar entenderia lógico, e não a imitar Lenine, Estaline ou qualquer dos seus sucessores comunistas.
Tendo sempre presente na memória as origens do Estado russo na Kiev medieval, Moscovo é hipersensível às ambições da atual liderança da Ucrânia de se aproximar do Ocidente, não só da UE mas também da NATO, e aos mitos do passado junta-se uma bem presente preocupação com a segurança. É preciso relembrar que entre os antigos membros do Pacto de Varsóvia que integraram a NATO depois do fim do bloco comunista estão vários países que tiveram múltiplos conflitos com a Rússia, estivesse esta ou não sob o manto da URSS. Rivalidades históricas que subsistem e que nem sempre são inteligíveis para os países da Europa Ocidental, que aderiram à NATO no quadro da Guerra Fria, tão perigosa pelo duelo nuclear das superpotências como simples de entender nas motivações de um lado e do outro.
Mesmo com negociações em curso entre o chamado Ocidente e o Kremlin, com o destino da Ucrânia como pano de fundo, a possibilidade de uma guerra permanece, como o próprio Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, disse nesta semana. E a prova de que a insensibilidade de cada um dos lados aos argumentos do outro traz riscos acrescidos pode surgir da forma mais surpreendente: o regresso em força do debate sobre a adesão à NATO na Suécia e na Finlândia, países que durante a Guerra Fria se mantiveram neutrais, o primeiro porque é sua tradição desde o fim das Guerras Napoleónicas, o segundo porque foi a forma de travar uma eventual terceira invasão soviética, depois da que foi rechaçada e de outra que levou à perda de um terço do território.
Os riscos da tensão a propósito da Ucrânia são tão grandes, que mesmo um evento paralelo como a súbita crise no Cazaquistão, onde o presidente pediu apoio militar ao Kremlin numa arriscada mensagem de força que pode ser contraproducente se as tropas russas não retirarem rapidamente (o que parece estar já a acontecer), chegou a ser visto como mais um cenário de expansionismo russo. Como se não houvesse diferenças sérias entre a Ucrânia e o Cazaquistão, país da Ásia Central que até agora conseguiu conciliar o nacionalismo cazaque com os direitos da minoria russa e que mantendo-se aliado formal de Moscovo nunca descurou a boa vizinhança com a China e as relações amistosas com a UE e os Estados Unidos. Quando muito, no quadro da tensão Ocidente-Rússia, a solidariedade de Putin com Kassym-Jomart Tokayev servirá para lembrar que qualquer grande potência nunca deixará de vigiar a vizinhança, a bem ou a mal, pensemos nos Estados Unidos e a intervenção no Haiti já depois da queda do Muro, isto para não falar do embargo a Cuba.
Falar de nova Guerra Fria é, pois, um exagero, primeiro que tudo por faltar ao Kremlin não só a tal ideologia exportável como meios comparáveis aos da era soviética (a economia russa é hoje do tamanho da australiana, o seu orçamento de defesa bem inferior ao americano e ao chinês). Mas, analogias históricas à parte, é conveniente que os ânimos serenem e as negociações avancem. Mas agora até uma queixa contra o último presidente soviético, Mikhail Gorbachev, surge na Lituânia, uma das três antigas repúblicas soviéticas parte da NATO, por causa da repressão em vésperas da independência.