Saturação

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O Tejo, o Douro. Os azulejos, as igrejas, os becos, as calçadas. O pastel de nata, o café. Os moliceiros e as infinitas praias. As oliveiras e os sobreiros. Que beleza, que bondade! Portugal está na moda. E embora eu não goste de usar esta fórmula, pois contém o seu próprio fim, temos de admitir, há um entusiasmo absoluto pelo fantástico "jardim à beira-mar plantado" que me acolhe há muitos anos.

Se as maravilhas mencionadas acima não são novas, para muitos turistas são uma autêntica descoberta. É isso o verdadeiro sentido de fazer turismo: descobrir um país, os seus habitantes e os seus costumes. Desde há vários anos - coloco o ponto de partida em 2014 - é um extraordinário coup de foudre por parte dos estrangeiros: com 20,6 milhões de visitantes em 2017, o país já não é um desconhecido. Ainda bem. O dinheiro vai para os cofres: um enorme montante de 15,3 mil milhões de euros foi deixado pelos turistas no ano passado no país. Quantia bonita, não? Emprego, atividade, desenvolvimento... cidades cinzentas atormentadas pela crise que agora ficam pintadas de gruas. As agências imobiliárias proliferam em Lisboa, Porto, Faro... A tal ponto que se pergunta se os agentes não acabarão por vender os imóveis uns aos outros! Os hotéis crescem como cogumelos: sobrepõem-se em pontos nevrálgicos e são mais ou menos parecidos.

Mas que país se queixaria de se ter tornado o queridinho dos europeus? Porque se brasileiros, americanos e chineses ficaram apaixonados por Portugal, a verdade é que os espanhóis, os britânicos e os franceses compõem a maior parte do contingente de visitantes. Os franceses, precisamente. Sem dúvida, porque se eles foram os últimos - ou quase - a ter "descoberto" Portugal como um destino turístico próximo, agora são bem visíveis.

Provavelmente também porque os aposentados franceses souberam usar o RNH, o estatuto de residente não habitual, que os isenta de impostos sobre as suas pensões por dez anos, com algumas restrições pouco difíceis de seguir, como a obrigação de viver metade de tempo em Portugal. Ainda na esteira dos aposentados do RNH, há jovens profissionais a instalar-se para beneficiar do teto de 20% aplicável aos impostos sobre os seus negócios. Acresce a isso a juventude dos call centres, e outros jovens supostamente "estudantes" e a língua de Molière passou a ser, de longe, a mais comum nas ruas de Lisboa.

Para todos estes franceses, o vocabulário superlativo passou a ser praticamente limitado quando falam de Portugal: bonito, paraíso na terra, eldorado, praias lindas e desertas, águas cristalinas, cidades a-do-rá--veis, tudo muito barato, e tão cool. Sobre os portugueses, não faltam elogios: bondosos, prestativos, com um verdadeiro sentido de hospitalidade. Podemos supor que turistas de outras nacionalidades digam a mesma coisa: os top 10 disto ou top 20 daquilo mostram isso regularmente. Mas aqui qualquer cenário tem o seu revés. Ao presunçoso discurso dos franceses - mais uma vez, são os que conheço melhor - opõe-se o discurso claramente mais frio e distante dos próprios portugueses. Uma onda recente causada pela saturação.

Os habitantes falam de "invasões", que se referem às guerras napoleónicas, e aos tormentos deixados no imaginário coletivo português. Eles também evocam pessoas barulhentas, indiferentes e muitas vezes arrogantes. Em resumo, pessoas pouco recomendáveis. As redes sociais dão uma boa ideia do curioso desencantamento que se estabelece. Enquanto de um lado os comentários entusiasmados dos franceses sobre a bondade portuguesa se acumulam, do outro lado os críticos portugueses tornam-se cada vez mais amargos. Os dois universos deixaram de se encontrar? Não sei, mas estou preocupada com o endurecimento do tom.

No meio disto, as notícias alarmantes sobre as expulsões, centros urbanos esvaziados dos seus habitantes, preços a subir... e o sentimento de os portugueses se terem tornado serviçais dos estrangeiros abastados que ocupam todo o espaço urbano, tornando quase impossível o uso dos transportes públicos onde já não há espaço para se sentarem. Nunca vou esquecer o comentário de uma turista no elétrico, enquanto eu reclamava porque ninguém queria ceder o lugar a uma velhota. "Do que é que a senhora se queixa? Com todo o dinheiro que vos deixamos!" Era implícito: sofre em silêncio. A senhora era francesa. Um acaso claro. Mas não posso deixar de refletir sobre isso: quando será que a linha vermelha vai ser ultrapassada? Quando é que a saturação será tal que a coabitação ficará impossível? Será possível parar a tempo antes de Portugal perder a alma?

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