Sátira, pilhéria e chalaça

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A assistência saiu da Bertrand do Chiado um bocado atordoada. Os presentes, como bem resumiu Carlos Vaz Marques no seu pontapé de saída para o debate, tinham ido até ali "na expectativa talvez até de rir um pouco". Alguns, especulo eu, na expectativa até de rir mesmo muito. O que talvez a maioria não esperasse era ouvir citar mais autores e livros do que aqueles que este vosso cronista tem na estante (e também espalhados pelo chão, mas isso não vem ao caso).

Em defesa dos rapazes convém no entanto perceber que Paulo Nogueira, Ricardo Araújo Pereira e Rui Zink estavam ali para responder a uma pergunta: se "a literatura portuguesa tem sentido de humor?" Convinha, por isso, falar de literatura. Quanto à resposta e tanto quanto entendi, foi um "nim" assim mais para o "não". De acordo com o trio e após listagem dos autores da nossa mais bem disposta prosa nacional, os brasileiros têm um cânone literário com mais pilhéria, os espanhóis ostentam um D. Quixote que inclui muito mais momentos jocosos do que Os Lusíadas e da chalaça dos anglo-saxónicos então nem se fala; ao pé deles somos mais tristes do que o eventual filho de António Nobre e Florbela Espanca. Estou crente de que, tivessem eles mais meia hora de argumentos, até os finlandeses nos ganhavam em barrigadas de riso.

A melhor imagem para descrever o tom geral da conversa é a de uma espetada mista: entre cada duas citações, os convidados entremeavam o seu argumento. Ricardo Araújo Pereira tirou a barriga de misérias e demonstrou ter bem fresquinhas na memória desde passagens de Hamlet a O Suplente do próprio Zink, demonstrando a Carlos Vaz Marques pelo caminho o seu superior conhecimento de Camilo (o Castelo Branco). Não pensem pelo que digo que foi pedante. Nada que se pareça. Foi tão erudito como os restantes e daí a surpresa para quem não o conheça (como é o meu caso, mas conheço quem o conhece e sei que é uma pessoa séria).

Enquanto as citações iam e vinham, os quatro protagonizavam um momento hilariante de autêntica slapstick comedy que ensaiado não sairia melhor. Conseguiria descrever a cena para vos proporcionar gargalhantes movimentos do abdómen se escrevesse melhor do que escrevo. Tudo começou com Zink a queixar-se de que o Paulo não lhe queria dar o microfone, o Paulo a denunciar que o Carlos é que estava sentado em cima dele e pouco depois o Ricardo, enquanto todos tentavam desenredar o fio à volta dos respectivos pés, já propunha sentar-se ao colo do Rui para poder falar. Não chegou a ser necessário, para tristeza dos fotógrafos e do operador de câmara na sala.

Desde o início ao fim do debate, Carlos Vaz Marques ia lançando perguntas e os convidados iam respondendo a outra coisa qualquer, de acordo com o discurso previamente ensaiado. Por vezes, concordavam. Com o corrosivo poder de ataque do humorista, por exemplo. Zink mencionou entre outros Alberto Pimenta e o caso de José Vilhena, preso antes do 25 de Abril, o Paulo reforçou com Millor Fernandes: "Os humoristas têm importância suficiente para serem presos, mas não para serem soltos."

"A morte do artista", salientou Zink a certa altura, "é quando o próprio primeiro-ministro começa a dizer que gostou muito". Não consegui ver se o Ricardo acusou o toque, mas achei que se identifica com Camilo quando afirmou que o escritor era "um chalaceiro do mais chocarreiro que se possa imaginar".

Houve muito mais do que isto, incluindo momentos sérios, respeitáveis e muito demonstrativos da erudição dos convidados. Como tal, e na parte que me toca, irrelevantes.

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