DESDE 2003, as sardinhas desenhadas em pendões que passaram a chamar os lisboetas para a noite de Santo António tiveram sempre a assinatura de Jorge Silva. Caíram no goto de muita gente, e todos os anos, muitos pendões colocados pela cidade levam sumiço. É afinal um elogio ao seu autor, não apenas Jorge Silva mas o atelier Silva! Designers. Este ano, o fenómeno de desaparecimento repetiu-se: acabados de colocar, muitos eclipsaram-se quase de seguida..Jorge Silva seleccionou sete artistas plásticos, autores de BD ou gráficos para reinterpretarem a sardinha fresca e linda que já não se vende de porta em porta, devidamente acamada em sal e carregada à cabeça por varinas equilibristas..Todos os anos as sardinhas foram conhecendo transformações. Em 2004, por exemplo, o Europeu de Futebol propiciou variações sobre esse tema. Em 2005, lembra o designer, a CML proibiu a colocação de pendões, e o recurso foi os graffiti a stencil nas paredes..JORGE SILVA diz que a sardinha já conquistou o seu lugar como uma espécie de anfitrião das festas. Nos anos de 2006 e 2007, «houve uma espécie de período de nojo, e elas surgiram muito discretamente». Em 2008, aproveitando o Ano Internacional das Comunidades, ganharam a intimidade de outras culturas além da portuguesa: havia sardinhas «espanholas», «africanas», «indianas» e «japonesas»..Este ano, «entendemos que as sardinhas já tinham um percurso suficiente para poderem e deverem ser trabalhadas por outras pessoas», observa Jorge Silva. A escolha recaiu em artistas plásticos ou gráficos de idades mais ou menos próximas..NUNO SARAIVA.Uma réstia de pudor.«Andava eu todo contente a salvaguardar uma réstia de consciência pudica, quando há poucos dias me atiram com esta: “Pá, não disfarçaste nada, a tua sardinha parece mesmo um pénis.” Juro, pelo Santo António e por todos os manjericos, que tive como principal preocupação evitar tal interpretação, tanto na forma como no conteúdo! Confesso que a ideia passou pelo esboço mas teve um tempo de vida igual à passagem de uma imperial para outra. É que rapidamente me apercebi que uma sardinha fálica seria não apenas delírio imberbe mas, acima de tudo, uma constrangedora falta de imaginação. Limitei-me, acreditem, a traçar a fina silhueta deste clupeo. É tão simples no seu perfil que qualquer alfacinha, ou tripeiro, pombo ou gato, reconhece ali uma sardinha. Para lhe acrescentar alguma cor, decidi-me pela decoração das escamas. Ora, as escamas de um peixe sempre me pareceram banais, cinzentas, sem ponta por onde se lhes pegue, apenas capazes de excitar um biólogo marinho. Por isso, por aí, resolvi mexer...».Nuno Saraiva nasceu em 1969, em Lisboa, onde vive e trabalha. É professor de BD e de Cartoon Político no Ar.Co. Tem publicado banda desenhada desde 1993 na imprensa portuguesa..LUÍS HENRIQUES.À maneira de Stuart.«O atelier Silva! propôs-me uma sardinha à maneira de Stuart.Stuart está ligado à história das Festas de Lisboa: em 1935, foi o responsável pelo programa do evento. Esse trabalho específico não tem, no entanto, a marca dos desenhos mais breves. Aí há diferenças de densidade e linhas abertas que oferecem uma imagem do próprio fluxo do desenho. Se juntar o humor, a mímica e a síntese na caracterização, dou uma ideia do seu valor extraordinário (e do sarilho em que me meti). Pôr tudo numa sardinha era impossível. Portanto, procurei concentrar-me na sugestão humorística e na marca gestual. Apresentei propostas a preto e branco mas a cor das outras sardinhas ditou a introdução da mancha azul (com o auxílio do atelier). Em forma de homenagem, recriei a assinatura “STUART” numa textura que sugere as marcas de uma grelha de assar.».Luís Henriques nasceu em Lisboa em 1973. É ilustrador e autor de banda desenhada. Tem vários livros publicados..HENRIQUE CAYATTE.Esta sardinha chama-se Mãe.«Esta sardinha chama-se Mãe. Passeia-se no Tejo acompanhada pelos seus dois filhos. Já foram até ao mar da Palha, passando por baixo da Ponte Vasco da Gama, e agora voltam para baixo e vão para as Festas de Lisboa. Já visitaram a Expo e saíram no Cais das Colunas. Poderão ser vistas nas ruas de Lisboa a passear por todos os bairros a falar e a rir, de dia e de noite, a cantar e a dançar e a comer e beber com toda a gente. Depois vão a Belém comer pastéis. Quando as Festas acabarem vão pelo Atlântico conhecer outras festas noutros sítios. Voltam para o ano.».Henrique Cayatte nasceu em 1957, em Lisboa, onde frequentou a Escola Superior de Belas Artes. Foi director gráfico de diversas editoras e desenvolve actividade como designer gráfico, em Portugal e noutros países. Foi o autor do grafismo inicial do jornal Público..PEDRO PROENÇA.Pequenino como a sardinha.«As boas e enxutas sardinhas, pequeninas como eu, ou como “determinadas mulheres” (as minis), puseram-me a fazer variações “linguísticas” das quais não me recordo – incursões no castelhano, no germânico, no bife e no franciú, às quais sobrou esta sardinha “chique-a-valer”, como quem vai para uma orgia báquica (“AI, MEU SANTANTONINHO!”) toda, “a modos que” aperaltada – podia dizer que a “culpa” da escolha não foi minha, mas culpo-me no ter dado a escolher (aos do design e arredores) como quem oferece a mão à palmatória – não queria uma sardinha miserável a fazer figura de “folclórica” para turista ver, mas uma sardinha tão popular quanto aristocrática, em bicos-dos-pés, saltitona, e de uma certa forma “mandona”, como não podia deixar de ser...».Pedro Proença nasceu em Angola (Lubango). É artista plástico. Vive em Lisboa desde 1963. Ilustrou diversos livros. Compõe música no computador. É autor do logótipo do semanário Sol..BELA SILVA.Nem tudo é perfecto.«Esta sardinha foi inspirada nos azulejos do século XVIII, com os ornamentos barrocos, volutas de acanto. É uma sardinha feminina como Lisboa é. Temos uma ninfa sereia à frente, sentada numa concha com vista perdida no horizonte para este mar, rio que nos convida a partir. Lisboa ganha com este rio Tejo, sem ele não era nada. Vivi muitos anos no estrangeiro e a imagem e alguma nostalgia de Lisboa não eram os pastéis de Belém, que reconheço serem muito bons, mas a imagem que tinha era de um Tejo que espreita entre os prédios, quando estamos no Chiado. Isso sim, dava saudades. Adoro sentar-me à beira do rio e saborear um belo vinho branco. Que pena não poder molhar os pés quando isto acontece. Nem tudo é perfecto!».Bela Silva é artista plástica. Nasceu em Lisboa. Viveu em Chicago e em Nova Iorque. Expôs em vários países. É autora da decoração da estação de Metropolitano de Alvalade, em Lisboa..JOÃO MAIO PINTO.Natureza exuberante e misteriosa.«A minha sardinha acabou por ser um regresso ao meu próprio imaginário gráfico, onde a natureza surge sempre exuberante e misteriosa, como material evocativo de uma outra realidade que não a nossa que pensamos conhecer. Eu vejo este meu trabalho como um espelho do exótico e do estranho, mas ao mesmo tempo do familiar naquilo que é a minha experiência pessoal do dia-a-dia. O meu imaginário conhece muito a sua génese na observação directa da forma como o homem coabita com a natureza, e a forma como esta redesenha para cada indivíduo a forma de ele se ver a si próprio. Como tal, a forma como o homem se conhece, e também o que deseja. A minha sardinha é um pouco tudo isto e é também o reduto do imaginário de quem a observa.».João Maio Pinto nasceu em 1974 no Caramulo. Vive em Lisboa. Lecciona na Escola de Artes e Design das Caldas da Rainha e na Escola Superior de Hotelaria do Estoril..ANDRÉ CARRILHO.Uma sardinha mecânica.«Quis dar à minha sardinha um ar de máquina pela qual já passou algum tempo, uma máquina marcada, um pouco ferrugenta. O ponto de partida foi um eléctrico, que é uma coisa muito lisboeta, mas a sardinha pode ser vista como um submarino, pode ser o que as pessoas quiserem. Quando olhei para um eléctrico, já a pensar no que seria a minha sardinha, olhei para aquela lâmpada, e a lâmpada já era um olho, era o olho da sardinha. Quis fazer uma sardinha cicatrizada, uma sardinha ferrugenta, uma sardinha-máquina, com pátina, uma sardinha que já viveu.».André Carrilho nasceu em 1974 na Amadora. Desde 1992 trabalha como designer, ilustrador e cartoonista em jornais portugueses – incluindo o DN – e estrangeiros, como o New York Times ou a Vanity Fair..O «padroeiro» de Lisboa.Era uma vez Fernando de Bulhões, jovem rico que decidiu mudar de vida e reclamar os direitos dos pobres. Lisboa já existia, e o homem que ali nasceu e viria a ser reclamado em Itália como Santo António de Pádua, porque ali morreu, nunca assistiu às festas que carregam o seu nome (embora o verdadeiro padroeiro da cidade seja S. Vicente). A madrugada de 13 de Junho transforma Lisboa, tal como outras festas populares transformam outras cidades ou aldeias. Em princípio ninguém se zanga com as liberdades que uns e outros tomam entre si. As excepções, como de costume, confirmam a regra. Come-se e bebe-se. Muito, quase sempre..E conte-se uma história verdadeira. Algures em Alfama, um casal lisboeta achou o lugar que considerou ideal para a sua sardinhada de Santo António. Uma mesa estava posta e livre à porta de uma casa. Sentaram-se. Lá de dentro alguém assomou e não se deu por achado. Encomendaram sardinhas, salada, pão, vinho, o costume. Foram servidos. Comeram, beberam e no fim pediram a conta. A pessoa que os serviu, sem nunca se ter desmanchado, informou-os então de que aquela era uma casa particular e não um dos muitos restaurantes improvisados que nessa noite surgem na cidade. Não lhes caiu o céu na cabeça porque quem os serviu desatou a rir. E não houve pagamento..Se não foi um milagre do santo que tem fama de casamenteiro, parece.