Sardinha
Pequenina, gorda, nutritiva, saborosa e agora até certificada. A sardinha portuguesa já merecia um tratado. Primeiro, por uma certa «santidade» na gestação: ela só está verdadeiramente boa para comer perto dos Santos Populares. Depois, porque a ciência lhe elogia os componentes amigos do organismo, como o ómega 3 e o ácido linoleico, impregnado de bom colesterol, o HDL. Nas páginas deste tratado, haveria lugar também para os tradicionais modos de a cozinhar e para as mais variadas formas de a acompanhar. E, claro, uma menção especial aos provérbios dedicados à espécie (quem já não ouviu que a mulher se quer pequenina como a sardinha?) e à história tão enraizada desse peixe azul na pesca portuguesa.
Comecemos pela história então. Reza a lenda que o nome da sardinha deriva do da ilha italiana da Sardenha, em cujas águas mediterrânicas esta espécie é abundante. Mito e realidade nem sempre andam a par e este parece ser um desses casos. É a velha história do ovo e da galinha, garante o «sardinólogo» francês Philippe Anginot. «Se formos ver onde nasce o nome Sardenha, veremos que é nas inúmeras sardinhas que podem ser encontradas na sua costa», explica à nm. Ainda hoje, é costume servir sardinhas em quase todos os restaurantes da ilha.
A história deste pequeno e singular peixe começa a ser escrita há cerca de quatrocentos milhões de anos, muito antes do aparecimento dos primeiros primatas. «As sardinhas são uma constante da alimentação humana. Não é preciso fazer grande pesquisa para saber que o homem desde sempre comeu sardinha, mesmo nos tempos pré-históricos. Podemos dizer, com toda a certeza, que seria o único produto que os nossos antepassados reconheceriam hoje num supermercado», afirma o escritor, autor de La Sardigne: de La Mer à la Boîte (A Sardinha: do Mar à Lata), um livro que compila histórias e receitas com o pequeno mas nobre peixe, e de La magie de la Sardine (A Magia da Sardinha), ambos publicados em França.
Anginot estuda as sardinhas há mais de trinta anos e promete continuar a fazê-lo enquanto estas o «fizerem rir». O interesse começou nas latas de conserva, que captaram a sua atenção por servirem como forma de expressão cultural, acompanhando a evolução da arte contemporânea e a influência da pop art. Coleccionou centenas, «quase um milhar», de latas do mundo inteiro e só mais tarde se fascinou pelo paladar. Depois, vieram os apetrechos de pesca, peças de barcos e cartazes publicitários que, desde há quase duas décadas, fazem parte do seu Museu Imaginário da Sardinha, um museu itinerante que percorre a história e o universo deste extraordinário petisco.
Seduziu-o, sobretudo, a «simbologia» da espécie que é, há milhares de anos, o peixe «da revolução e da insanidade, representando o início e o fim das coisas». É também, revela o autor, o símbolo dos parvos. Prova disso são os rituais de enterro da sardinha, celebrados no final do Carnaval, em algumas zonas de Espanha, por exemplo. «Duas sardinhas juntas significa a inversão de valores, do tempo, de tudo. É por isso que nesta cerimónia toda a gente está travestida, as pessoas choram em vez de rir e gozam com tudo o que é respeitável, sobretudo a religião e a política», conta.
Um negócio que já não compensa a loucura da procura
Na elegia à sardinha, talvez não houvesse lugar para páginas incómodas escritas por aqueles para quem ela é mal-amada quando chegam os Santos Populares. «Tomara que o dia desaparecesse do calendário», pensam muitos dos fornecedores de peixe. Estão fartos da corrida desenfreada à sardinha gorda e fresquinha. Do frenesim nos mercados, da inflação dos preços. «Um inferno», garante Francisco Gonçalves, de 39 anos, que mantém com a mãe, Natalina, uma peixaria no Bolhão, o mais célebre mercado do Porto.
Uma vez, por essa altura, uma empilhadora passou-lhe por cima do pé. As botas de biqueira de aço salvaram-lhe os dedos, mas não o livraram de uma nódoa negra. O «inferno« repete-se todos os anos: na madrugada de São João, o povo atropela-se para comprar os cabazes de sardinha fresca. Há «gente mal-educada, safanões e muita confusão», conta Francisco. Na lota como na Bolsa, procura-se o melhor negócio.
O peixe é leiloado. Compra quem for mais expedito a carregar no botão do comando electrónico e apostar na melhor licitação. Seria um sistema justo se não subsistissem as habituais «negociatas», desabafa. Alguns fornecedores já se entenderam com os donos dos barcos, sobretudo os espanhóis, «que têm as melhores frotas» e, por isso, «conseguem ir mais longe para pescar mais sardinhas». Ao contrário dos portugueses – cujas traineiras saem à meia-noite e usam a técnica de cerco, mais sustentável [ver caixa], em que vários barcos envolvem com redes a área onde estão os cardumes – «os espanhóis não se coíbem de recorrer à pesca de arrasto». Uma técnica que, por consistir no arrastamento de gigantescas redes ao longo do fundo do mar, ameaçando os ecossistemas marinhos, está proibida em vários países.
Depois, há ainda as candongueiras. São as intermediárias do intermediário do negócio. Quem paga mais caro, claro, é o consumidor final. Desde a primeira transacção até chegar ao prato do consumidor, o preço sofre vários agravamentos: em média, um cabaz com 22,5 quilos é negociado na lota por cerca de trinta euros, pouco mais de um euro por quilo. Os intermediários vendem-na aos semigrossistas (peixarias e restaurantes, sobretudo) por cerca de 52 a 54 cêntimos a sardinha. Quando esta chegar por fim ao prato, custará quase um euro. «São as leis do mercado», explica Agostinho da Mata, presidente da Propeixe, uma cooperativa de produtores de peixe sediada em Matosinhos.
Apesar dos aumentos sucessivos desde a primeira compra, o preço da sardinha não é estável e pode sofrer variações ao longo do próprio dia. Como em todos os mercados, depende da lei da oferta e da procura, mas também de outras variáveis. Por exemplo, a hora em que a sardinha é pescada. «Será mais cara do alvorecer até às sete da manhã, mais barata depois do meia-
-dia», revela Agostinho da Mata. Será também tanto mais cara quanto menos tempo passar a bordo, pois estará mais fresca. O tamanho é igualmente importante, mas, muitas vezes, «a sardinha vem toda misturada com petinga, a mais pequena».
Santos Populares inflacionam o preço
Natalina, a peixeira do Bolhão, negoceia à moda antiga. Na madrugada do dia de São João, uma fonte liga-lhe ainda antes das traineiras chegarem ao porto. Vai-lhe passando informações: se a sardinha vem de frota espanhola, se é da costa portuguesa, etc. No mercado, garantem, é do Norte de França que «vem a melhor sardinha, mais gorda e saborosa», embora por esta altura «a nossa até a supere» na prova do prato. Francisco, o filho, diz que já houve mais oferta e melhor qualidade. E os preços inflacionam sempre muito. Paga-se muito mais pela sardinha no São João, como pelas flores no Dia dos Fiéis ou pelo cabrito na Páscoa. Um cabaz que normalmente ronda os trinta euros chega a custar 150.
As festas são oportunidade de lucro e desatam a loucura. Uma vez, Francisco teve de se agarrar aos cabazes na lota de Matosinhos para que não os roubassem. Noutras ocasiões, a meio da tarde, as sardinhas são quase oferecidas, vendidas a preço de saldo, para que não se estraguem. Ou então, se atingem um valor mínimo, são simplesmente retiradas da negociação. «Podem ser congeladas, para responder ao mercado mais tarde ou para lhes dar outro destino. As que não tiverem qualidade são simplesmente deitadas fora», revela Agostinho da Mata.
Para que o negócio compense, Natalina – uma transmontana de gema que destripa em segundos uma sardinha pequena sem a desfazer – aconselha os clientes a não esperarem pelo Dia de São João. O melhor é comprar antes e congelar. Por isso, atrás do balcão há três baldes com água salgada. «Se levarem a sardinha uma semana antes, congelando-a com água do mar, pagam-na mais barata, de melhor qualidade, e ela estará fresquinha no dia da festa», diz.
As irmãs Marques, Conceição, de 69 anos, e Isabel, de 59, discordam. A melhor sardinha, defendem, é a que é pescada de madrugada na costa. Por isso, se não houver suficiente na lota ou se ela não for portuguesa, preferem não a vender nesse dia. Também para elas o São João é dia que podia não existir. «É uma confusão dos diabos», suspiram. Filhas de pescadores, só comercializam «produto nacional», embora confessem que a sardinha é coisa que já vendem pouco, porque o negócio não compensa. «Desde que a lota de Matosinhos foi aberta ao público, perdemos muito negócio. Por isso a sardinha é coisa que já não nos compensa», adiantam, recordando outros tempos em que a sardinha, «além de mais barata, era melhor».
«Espero enganar-me, mas, pelo que tenho visto e pela experiência que tenho, não vamos ter a sardinha com o nível de qualidade de gordura de outros anos, a pingar no pão», concorda Agostinho da Mata. «Há muita disponibilidade, mas não será aquela sardinha grande. É boa, muito boa, mas nada que se compare a outros anos.»
Boa para o coração e para a mente
Peixe popular desde sempre associado às camadas mais pobres devido ao seu baixo custo, a sardinha tem sido muitas vezes subestimada. «Não há nada melhor para a nossa saúde», garante Philippe Anginot. «Tem mais proteínas, mais vitaminas e mais minerais do que a carne.»
À semelhança de outros peixes gordos típicos de águas salgadas e frias, como a cavala, o arenque, o salmão, o atum ou a truta, a grande riqueza da sardinha está na elevada quantidade de ómega 3, uma família de gorduras saudáveis benéficas à nossa saúde. Graças a estes ácidos gordos essenciais à vida, explica a nutricionista Helena Real, o consumo de sardinha contribui para a redução do risco de doenças cardio e cerebrovasculares, a principal causa de morte em Portugal, diminui a pressão arterial e previne a aterosclerose (por redução dos níveis de triglicerídeos e do colesterol LDL, o mau colesterol), entre outros benefícios. O ómega 3 tem também um importante papel na saúde mental, reduzindo os riscos associados à doença de Parkinson e ajudando a travar a progressão de Alzheimer. Além disso, favorece o desenvolvimento e funcionamento do sistema neurológico, em especial durante a gestação. A lista de benefícios é tão extensa que daria para redigir outro tratado.
Claro que para que os efeitos se façam sentir é necessário que o consumo de sardinha e outros alimentos ricos em ómega 3 seja regular. «É importante fazer pelo menos uma refeição de peixe por dia», alerta a nutricionista que revela a grande vantagem da sardinha face a outros peixes: a inexistência de níveis elevados de mercúrio, comum noutro pescado. «A ingestão de peixe é a principal forma de exposição humana ao metilmercúrio, cuja concentração no organismo está directamente associada ao risco de doença cardíaca. Deve, por isso, consumir-se peixes de espécies variadas, colocando a tónica em peixes gordos com um baixo nível de mercúrio, como a sardinha», adianta Helena Real.
A explicação é simples: como a sardinha vive menos tempo no mar antes de ser pescada e levada à mesa, tem menores concentrações desta substância tóxica do que outros peixes.
Fresca ou em lata?
Para se tirar o maior proveito das qualidades nutricionais da sardinha é preciso prestar atenção à forma como ela é preparada e confeccionada. Deve evitar-se fritá-la ou cozinhá-la no microondas, pois a temperatura elevada compromete a estrutura dos ácidos gordos e as suas propriedades. Mesmo a sardinha assada não está isenta de cuidados. Um estudo recente de investigadores da Universidade do Porto revelou que a sardinha ou postas de salmão assadas durante demasiado tempo (seis a sete minutos de cada lado) perto das brasas adquirem compostos cancerígenos.
Apesar de o consumo de sardinha fresca grelhada, cozida ou assada ser aquele que permite tirar melhor partido das propriedades deste peixe, o recurso ao alimento enlatado pode também representar importantes ganhos para a saúde. Além de ser mais macia e fácil de consumir, a sardinha em conserva preparada em óleo ou azeite, em tomate ou em molho de escabeche, é uma importante fonte de cálcio. Uma lata fornece até trinta por cento da necessidade diária de cálcio, mais do que um copo de leite.
A fama nem sempre foi assim. Durante muito tempo acreditou-se que a sardinha em lata era prejudicial à saúde por culpa do óleo que era usado. Em França, explica Philippe Anginot, o argumento ganhou força quando as fábricas de conservas se deslocaram para Portugal, Espanha e Marrocos. «Aqui, ainda se pensa assim, mesmo não sendo verdade», admite. A diferença, explica, está sobretudo no tamanho e no modo de confecção: os franceses preferem as sardinhas bebés – mais pequenas que as portuguesas ou as espanholas – que são fritas em óleo antes de serem enlatadas e não cozidas a vapor e depois colocadas em óleo, como acontece com muita da sardinha enlatada de forma industrial. Em alguns casos, a sardinha em lata atinge a excelência. É o que acontece com as famosas latas millésimées (safradas), conhecidas como o «foie gras do mar», sardinha seleccionada e conservada em bons ingredientes que podem ser guardadas até dez anos, lembrando as melhores colheitas de vinhos.
O gaulês puxa a brasa à sua sardinha, mas rende-se a uma evidência: «Ninguém no mundo come tanta sardinha como os portugueses. Aqui, em França, por exemplo, muitos trabalhadores portugueses são chamados “sardinhas” pelos outros trabalhadores.»
SARDINHA PORTUGUESA COM CERTIFICAÇÃO VERDE
Desde Janeiro, a sardinha capturada na costa portuguesa é a única espécie da Península Ibérica com certificação de qualidade sustentável. Noventa e cinco por cento da produção nacional de sardinha vai passar a ter a etiqueta azul do Marine Stewardship Council, uma ONG internacional que supervisiona o sector para denunciar e encontrar soluções para a sobrepesca, sendo responsável pelo único programa de certificação mundial do pescado. Requerida há dois anos pela Associação Nacional das Organizações de Produtores de Pesca do Cerco e pela Associação Nacional das Indústrias das Conservas de Peixe, a etiquetagem certifica que todo
o processo da pesca portuguesa da sardinha respeita a sustentabilidade dos recursos marinhos.
PROVÉRBIOS
No São João, a sardinha pinga no pão.
Sardinha bem salgada, bem cozida, mal assada.
Sardinha e galinha só com a mãozinha.
Sardinha na chama e mulher na cama.
Sardinha que o gato leva, gualdida vai.
Sardinha sem pão é comer de ladrão.
Sardinheiro vende sardinha e come galinha.
A mulher e a sardinha quanto maior mais daninha.
A mulher e a sardinha quer-se pequenina.
A como vendes a sardinha? A como encontro a tolinha.
55 MIL
toneladas de sardinha foram descarregadas em 2009 nas lotas nacionais, o que faz da sardinha o peixe mais pescado (cerca de 45 por cento do total) em Portugal
DICAS PARA TIRAR O MELHOR PARTIDO DAS SUAS SARDINHAS
Como escolher
Antes de comprar sardinhas tenha em atenção algumas características, para ter a certeza de que são frescas. Verifique se os olhos estão brilhantes e salientes, se as guelras se apresentam vermelhas e sem muco e se o corpo tem uma consistência firme, macia ao toque e com uma cor viva. Não se preocupe com as escamas soltas, pois isso é normal nas sardinhas. Fique também atento ao odor, que deve lembra o de algas ou de maresia. Um odor demasiado forte é sinal de que o peixe se está a deteriorar. Consuma-as no próprio dia ou no dia seguinte à compra. Até lá, mantenha-as no frigorífico, de preferência na zona mais fria.
Como assar
Só a experiência aguça a técnica de assar sardinhas sem lhes retirar a gordura natural que pinga no pão e no prato. Miguel Vieira, responsável de sala do restaurante Trás D’Orelha, em Matosinhos, prepara as brasas com meio saco de carvão pelo menos meia hora antes de colocar
as sardinhas. Salga-as bem numa bacia e estende entre vinte a trinta numa grelha comprida. À medida do necessário, vai alimentando as brasas, para garantir um calor constante. Mas o verdadeiro segredo, diz, é «virá-las constantemente até ficarem cor de prata», conforme o adágio popular, o que pode demorar entre dez e 15 minutos.