Saramago no mundo

Qual a herança do Nobel da Literatura Portuguesa para o mundo? De “génio literário” a “polémico” de língua afiada, José Saramago transpôs fronteiras geográficas e abraçou o globo com os seus ideais, deixando na carne viva da memória uma literatura moderna com o peso de lições de Humanidade. Acima de tudo, deixa a cultura Portuguesa um pouco mais espalhada pelo mundo.
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José Saramago foi um cidadão do mundo. Nos livros, as viagens eram a cadência recorrente para contar as histórias. Os seus livros transpunham fronteiras tão improváveis como a tradução para a língua persa ou a adaptação para a dança da “Jangada de Pedra”, obra da coreógrafa brasileira Suely Guerra. O Nobel da Literatura está traduzido em 42 línguas e em 53 países. Terá vendido mais de 20 milhões de livros e é um marco literário da Língua Portuguesa com maior ou menor expressão nos cinco continentes. Chegou às estantes de vários países europeus e até dos Estados Unidos, esgotou edições na China e alcançou mercados tão longínquos e impensáveis como o Iraque, Irão, Coreia do Sul, Cuba, Bangladesh ou Japão.
Se a obra do escritor português era verdadeiramente global, Saramago, o homem, não o era menos. A sua verborreia afiada incendiava polémicas internacionais. O que dizia, pensava e escrevia este homem “universal” de voz pesada, retumbante, quer fosse bem ou mal-amado, era sempre notícia. As suas palavras não tinham só peso literário. Tinham peso internacional. O mundo não lhe ficou indiferente e a repercussão mediática da sua morte, mais as recentes conjecturas da responsabilidade de um legado, são as provas óbvias do seu valor cultural.
No Brasil, por exemplo, logo após o conhecimento da sua morte, a prestigiada Academia Brasileira de Letras, de quem Saramago era ilustre sócio-correspondente desde o ano passado (cargo que não chegou a ocupar) decretou três dias de luto académico, e isto apesar do escritor sempre ter recusado que a sua obra fosse traduzida para Português do Brasil. Nesse mesmo dia, venderam-se em São Paulo, logo pela manhã, 11 mil exemplares da Saramago-biografia do português João Marques Lopes. “Ele representa literária e civicamente a voz dos explorados e oprimidos”, afirmou o autor à imprensa brasileira.
Apesar de crítico visceral da Igreja Católica, questionador da História, da Humanidade, do Capitalismo, dos conflitos internacionais (embora reiterasse sempre que não procurava a provocação), e denunciador das violações de direitos humanos, Saramago reúne um certo consenso mundial: ele era um génio literário e um Humanista. Deixou mais de 46 livros – romances, contos, crónicas, poesia, teatro, diários, memórias, três libretos para ópera e viagens –  onde se cruzam a filosofia, a política e a memória, que também projectaram internacionalmente a cultura portuguesa. Depois, não obstante as críticas, semeou admiração pelo globo. Para Cuba, era o “companheiro fiel”. Para Lula da Silva, presidente do Brasil, o “militante da liberdade”. Na Palestina, o chefe do Comité de Relações Internacionais do partido nacionalista Fatah, Nabil Shaath, via-o como um porta-voz universal da causa palestiniana. Para Espanha, era um “privilégio” tê-lo como residente (na ilha de Lanzarote). O presidente do Governo espanhol, Jose Luis Zapatero destacou “a imaginação e consciência crítica” do homem que os espanhóis “choram como um dos seus”.
Dono de um estilo inconfundível que marcou a literatura moderna, Saramago, esse “comunista hormonal” como chegou a auto-intitular-se, é pai de uma linguagem particular que deixa com herança. Está sintetizada no adjectivo “saramaguiano”, que se refere a um universo próprio e de que poucos autores se podem gabar de o merecer.

Herança na Pátria Brasil

Se em Portugal e Espanha o reconhecimento do legado de Saramago é indiscutível, no Brasil, com 190 milhões de falantes de Língua Portuguesa, o escritor deixa, também, uma herança evidente. Para o escritor brasileiro Luiz Ruffato, que lançou recentemente em Portugal o livro “Estive em Lisboa e lembrei-me de ti” (Quetzal), os brasileiros tomaram-se de “amores” por Saramago e pela sua “linguagem selvagem”. “Rendemo-nos à sua postura ética, ao seu pensamento utópico, à sua coerência em lutar para salvar o humanismo, num mundo cada vez mais superficial e autómato”, diz à NS. Além disso, Saramago discutia, nos livros, “questões muito afins ao Brasil” como o “exercício de poder político numa sociedade injusta, cuja elite económica e intelectual sempre manteve uma relação de expropriação do bem público em benefício próprio”.
O Brasil é, aliás, “um dos principais mercados de Saramago no mundo” (24 títulos e 1,4 milhões de exemplares vendidos), depois de Portugal (três milhões) e “talvez” Espanha (que junto com a América Latina ronda os quatro milhões), conforme nota Luiz Schwarcz, amigo pessoal do escritor e editor da brasileira Companhia das Letras, que o representa. Schwarcz conta que levou a obra do Nobel para o Brasil, em 1987, por acaso, depois de uma conversa informal com a agente literária que, na época, procurava outra editora para os livros de Saramago.
O escritor português, que chegou a ponderar emigrar para o Brasil nos anos 60, manteve sempre uma estreita relação com o país. Nos anos 80 privava com intelectuais na casa da já falecida Ruth Cardoso, esposa do ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso. Além disso, ele defendia o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e chegou a escrever o prefácio para o livro que os retratava do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. Em 2005, Saramago, que era também um ecologista e protector da floresta amazónica, lançou, no Brasil, o primeiro livro impresso em papel com a certificação do Conselho Brasileiro de Manejo Florestal. Desde então, pediu pessoalmente às suas editoras que as suas obras fossem impressas segundo padrões sustentáveis, inaugurando um passo importante para o mercado editorial diminuir o impacto no desmatamento.
Nos cursos de pós-graduação tanto de Crítica e Literatura Comparada, como de Direito, das prestigiadas Universidades de São Paulo e Rio de Janeiro, a literatura saramaguiana é bibliografia obrigatória para estudar, sobretudo, os estados de excepção e as teorias democráticas. Para além disso, a famosa “rixa” entre António Lobo Antunes e José Saramago sempre seduziu os brasileiros. No início deste ano, a Bravo, a prestigiada revista de cultura brasileira, dedicou dois ensaios ao assunto (“O Fla-Flu dos Romancistas”) e, no ano passado, Lobo Antunes, na Festa Literária Internacional de Paraty como convidado, gracejou, referindo-se ao autor de Caim: “Vocês gostam mais do outro”.
O músico chico Buarque vê-o como “um zelador apaixonado da língua portuguesa”. E Fernando Meirelles, o cineasta brasileiro, que era seu amigo pessoal, deixou-lhe, em comunicado, uma homenagem: “A lucidez naquele grau é um privilégio de poucos”. Há três anos, o próprio realizador andava, por causa de Saramago, inseguro, porque não encontrava a fórmula de edição que o satisfizesse para juntar as várias horas de filme “Blindness”, baseado no “Ensaio sobre a Cegueira.” Meirelles não queria desiludir “o mestre”. No vídeo que circulou na Internet, com o momento em que mostrou o resultado final ao escritor ouve-se: “Fernando...não precisa...Estou tão feliz por ter visto este filme...[lágrimas] como estava quando acabei de escrever o livro”.
Nos últimos tempos, o cineasta brasileiro convivia mais com ele, por causa do documentário “José & Pilar”, a estrear em Setembro, do realizador português Miguel Mendes, co-produzido pela O2 de Meirelles. Descreve-o como um filme “comovente”, que retrata a vida do escritor com a companheira Pilar del Río, e desvela um “homem brilhante que sabe que seu tempo está acabando e tem muita pena de morrer”.
Em 2008, quando veio pela última vez ao Brasil, para o lançamento de “Memória de Elefante”, Saramago mostrava-se já um homem macilento, de voz intermitente e cansada. Quando uma jornalista lhe perguntou o que o fazia feliz, respondeu: “Escrever”. Foi nessa altura, também, que inaugurou no Instituto Tomie Ohtake, na cidade paulista, a sua exposição biográfica “A Consistência dos Sonhos”, que passara já por Portugal.

Anti-mordaça e edições esgotadas na China

Saramago, eco impertinente na política, nunca se furtou a dizer o que pensava, cristalino, como manifesto contra a mordaça e a ordem instituída. Em 1997, quando esteve no México para uma série de conferências, despoletou hostilidades oficiais entre visitantes estrangeiros, visitando as vilas de Chiapas e Acteal, para protestar contra o massacre de camponeses indígenas, tocando na ferida do confronto zapatista com o governo. O escritor mexicano Carlos Fuentes, que também já foi diplomata , disse que, por isso, além do Nobel da Literatura (que Saramago ainda não tinha ganho), ele deveria ganhar o da Paz.
Miguel Barnet, presidente da União de Escritores e Artistas de Cuba, propalou que o país, com a sua morte, perdeu “um grande amigo”, enquanto que a literatura mundial perdeu um “exemplo de ética e criatividade”.   Apesar de ter sido próximo do regime cubano e amigo pessoal de Fidel Castro, o Saramago mordaz não deixou de lhe apontar o dedo em 2003, desiludido com a violação dos direitos humanos pela execução de três dissidentes pelo desvio de um ferry.
Há sete anos, Saramago assinou uma carta colectiva sobre a iminência da guerra no Iraque ao presidente dos EUA, onde já vendeu mais de um milhão de livros, evidenciando, segundo Lopes Marques, uma “excelente penetração da obra” no mercado que poderá ajudar a perpetuar o legado do escritor. Nessa carta, Saramago subscrevia que a guerra é sempre “uma derrota para toda a Humanidade”. E, para ele, essa derrota estava plasmada sobretudo nas religiões, cujos dogmas turvam o mundo e a essência da Humanidade. Logo após o 11 de Setembro, por exemplo, num polémico artigo de opinião intitulado “O Factor Deus”, o escritor discorreu sobre a violência desencadeada no mundo (do Vietname a Israel), acusando de “criminosa”, “absurda” e ofensiva da razão, a justificativa de “matar em nome de Deus”.
No ano seguinte, quando visitou Ramallah, em Israel, numa comitiva da delegação do Parlamento Internacional de Escritores, o Nobel da Literatura comparou a ocupação israelita em territórios palestinianos a um campo de concentração nazi. As declarações desencadearam um aziago mau-estar com Israel, empolado, dois anos depois, numa entrevista ao jornal “Globo”, na qual o escritor alegava que o sofrimento do Holocausto não era um atestado de imunidade para a postura israelita perante a Palestina.
Saramago desconcertava. E transpunha isso, também, para a “difícil tarefa” de ser traduzido, conforme admitiu a tradutora inglesa Margaret Jull Costa. “Ele exige sempre um grande estado de alerta, pela densidade das palavras.” Na China, onde Saramago (Sa La Ma Ge) chegou a estar esgotado em 2008, o tradutor Fan Weixin, de 70 anos, teve de estudar a história da Igreja Católica para conseguir traduzir o “Memorial do Convento”, pois era alheio a todo esse referencial, tão diferente da história do seu país, onde em 1949 foi implantado o regime socialista. A tradução, publicada em 1997, foi distinguida com o Prémio Lu Xun «Arco Íris», atribuído pela Associação Chinesa de Escritores. E isso, também, é uma espécie de património saramaguiano além-fronteiras, já enraizado; uma espécie de poder irrevogável, como desabafou ao diário espanhol “El País”, o seu editor em Portugal,  Zeferino Coelho: ele é “um monumento português como Pessoa”.

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