Difíceis de se converter em imagens, os mundos conceptuais de José Saramago (1922-2010) e de Fernando Pessoa (1888-1935) não deixam de despertar algum fascínio ao cinema. Tanto ontem como hoje. O caso de Saramago é particularmente curioso, se atentarmos no facto de serem mais os cineastas estrangeiros a assumir o risco de adaptar obras suas do que os portugueses. Enfim, a inversão dessa tendência faz-se notar agora com a estreia de O Ano da Morte de Ricardo Reis, realizado por João Botelho, e uma anunciada adaptação de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, por Miguel Gonçalves Mendes, o realizador que filmou o documentário José e Pilar (2010) com a grande cumplicidade do Prémio Nobel e da sua mulher, Pilar del Río. Por sua vez, Pessoa, na instabilidade dos seus heterónimos, parece vaguear de filme em filme como um espectro literário que levanta a bruma sobre o imaginário lisboeta - veja-se Mensagem (1988), de Luís Vidal Lopes, uma película que assenta nesse texto profético do poeta e se converte numa leitura ela própria cabalística, ou a versão divertida da persona que se encontra na curta-metragem Como Fernando Pessoa Salvou Portugal (2018), de Eugène Green. Um poema aqui, outro ali, "Fitas de cinema correndo sempre/ E nunca tendo um sentido preciso", escreveu o heterónimo Álvaro de Campos, e lá isso é verdade: os sentidos são múltiplos. Aqui correm oito fitas, quatro baseadas em Saramago, e outras quatro de inspiração pessoana..A Jangada de Pedra (2002), George Sluizer.A primeira adaptação cinematográfica de uma obra de José Saramago, assinada pelo holandês George Sluizer, tem o realismo mágico do autor como força motriz. Segundo a fantasia deste, depois de um terramoto que atinge a Europa, a abertura de uma fenda dá origem à separação entre o território da Península Ibérica e o continente europeu, na imagem literal de uma placa tectónica à deriva no Atlântico. Como filmar tão caricato fenómeno? Rigorosamente como descrito, mas sem meios hollywoodescos. Esta coprodução entre Portugal, Holanda e Espanha assenta nas linhas do romance homónimo escrito em 1986, quando Saramago, de olhos postos no debate em torno da entrada dos dois países "irmãos" na Comunidade Económica Europeia, elaborou, por via do fantástico, a sua defesa do afastamento da Península Ibérica do centro europeu, que considerava uma cultura distante da nossa. No fundo, é já uma visão ensaística que precede a panaceia literária..Ensaio sobre a Cegueira (2008), Fernando Meirelles.Eis o cenário de uma pandemia de "cegueira branca" que provoca o caos humano, social e político. Julianne Moore interpreta aqui a única personagem imune à doença, mulher de um oftalmologista (Mark Ruffalo), que finge também estar cega para auxiliar os outros... O brasileiro Fernando Meirelles pegou num dos romances mais conhecidos de Saramago para lhe extrair o enorme simbolismo de uma crise global e ilustrar a ideia de inimigo invisível numa sociedade moderna com a atenção dispersa. Rodado em São Paulo, cidade genérica que serve de amostra para uma tragédia mundial, antes da estreia nos Estados Unidos o filme foi alvo de protestos por parte de uma associação de invisuais que o acusou de abordar de forma desrespeitosa o tema da cegueira. Ao que Saramago terá dito: "Como podem falar sobre um filme que [duplamente] não viram?" A propósito, o escritor aplaudiu o trabalho de Meirelles. Ficou satisfeito com o que viu. Comoveu-se, até..Embargo (2010), António Ferreira.O título não é de um romance, mas sim de um pequeníssimo conto inserido no livro Objeto Quase (publicado em 1978). Esta sátira negra com assinatura de António Ferreira vai aos primeiros escritos de Saramago buscar o rasgo distópico que convém ao cinema que se predispõe a mostrar um mundo disfuncional. Desta feita, o motivo de colapso é um embargo petrolífero que deixa um homem refém do seu próprio carro - por sinal, um homem que acabava de inventar de uma maquineta "revolucionária" para a indústria do calçado, e que vê a sua vida suspensa de um momento para o outro. A narrativa, demasiado magra e absurda para sustentar uma longa-metragem, ganha outras notas sugestivas com o retrato desordenado da família do protagonista. Mas, no fim de contas, esta é a história de um tipo azarado filmada com aprumo técnico e um estilo que se poderia definir como "irmãos Coen à portuguesa"..O Homem Duplicado (2013), Denis Villeneuve.Do realizador de Blade Runner 2049, esta adaptação livre de O Homem Duplicado reveste-se de mistério erótico para seguir os passos de uma personagem em vertigem interior: Adam (Jake Gyllenhaal) é um professor de História que leva uma existência enfadonha até ao dia em que, visionando um filme em casa, descobre o rosto de um figurante exatamente igual a si próprio. Segue-se uma pesquisa paranoica pela identidade do sósia - que será mais do que isso - e um encontro perturbador, com consequências elevadas à potência da metáfora... O final é aberto à interpretação de cada espectador, de mesma maneira que, para levar a obra de Saramago à tela, o argumentista Javier Gullón se baseou mais nas emoções geradas pelo livro do que no espírito da letra. Na véspera da morte do escritor tinha inclusive preparado, com Villeneuve, uma lista de perguntas para ele - talvez a ausência de respostas também sustente a atmosfera enigmática..O Encoberto (1975), Fernando Lopes .Esta curta-metragem documental de Fernando Lopes, que dá a escutar a leitura de um poema da "Mensagem" de Fernando Pessoa pela voz de João Cutileiro, é mais do que o testemunho da implantação, em Lagos, da estátua de D. Sebastião feita por esse escultor. Trata-se de um pequeno filme (apenas na duração) comprometido com a matéria da escultura e o labor da sua "aparição" da noite para o dia. Uma figura de pedra que se revela diante do olhar curioso dos populares - para logo depois voltar a ser coberta com panos - e que ali está como uma provocação moderna ao sebastianismo. É sobretudo na contemplação dos gestos de montagem a decorrer de madrugada que se sente a câmara de Fernando Lopes a explorar com desvelo o enigma contido no mármore que vai ganhando forma: é D. Sebastião, o louco. Ou como dizem os versos de Pessoa: "Sem a loucura que é o homem/ Mais que a besta sadia,/ Cadáver adiado que procria?".Os Mistérios de Lisboa ou What the Tourist Should See (2009), José Fonseca e Costa .Um guia turístico de 1925, da autoria de Fernando Pessoa, escrito em inglês, nunca publicado durante a sua vida e só descoberto em 1988. Este é o objeto literário que se destinava aos visitantes da Lisboa do outro tempo e no qual José Fonseca e Costa se baseou para prestar homenagem a Pessoa, com a ajuda de mais uns poemas do heterónimo Álvaro de Campos. Um olhar sobre a capital portuguesa que recupera o registo dos trabalhos do início de carreira de Fonseca e Costa, quando era contratado para realizar documentários promocionais. É o caso de uma curta-metragem de 1967 sobre a fábrica de chocolates Regina - A Metafísica dos Chocolates -, que inclui, precisamente, um poema de Álvaro de Campos... A prova de que o realizador sempre prezou a liberdade artística, mesmo em produções de encomenda..Filme do Desassossego (2010), João Botelho.Antes de projetar o simpático fantasma de Fernando Pessoa no grande ecrã, como o faz no novo filme, O Ano da Morte de Ricardo Reis, João Botelho já o tinha apresentado, ao lado de Mário de Sá-Carneiro, em Conversa Acabada (1981), e quase três décadas mais tarde aventurou-se no seu universo literário. O resultado espantoso foi o Filme do Desassossego, adaptação de uma obra inadaptável - O Livro do Desassossego -, que se serve do respetivo cariz fragmentário dos escritos para retratar o semi-heterónimo Bernardo Soares. Ele é um solitário ajudante de guarda-livros, fechado num quarto que dá para a Rua dos Douradores, em Lisboa, entregue ao movimento dos seus pensamentos e sonhos, e inscrito numa contemporaneidade noturna. Será das obras mais audaciosas de Botelho, que abandona assim a ideia de um texto para mergulhar na mente pessoana e operar a justa metamorfose livro/filme, dita impossível..Lisbon Revisited (2014), Edgar Pêra.E agora para algo completamente diferente: Lisbon Revisited é o cinema experimental de Edgar Pêra a fazer um exercício de colagem de escritos dos vários heterónimos de Pessoa e a gravá-los numa paisagem abstrata de sons e imagens sensoriais. Um filme concebido no âmbito do projeto coletivo Guimarães 3X3D, dando continuidade à exploração dessa linguagem que tem marcado a obra do realizador, e que funciona como uma experiência bizarra de celebração da palavra de Fernando Pessoa, nas três línguas em que este escreveu: português, inglês e francês. Um verdadeiro assalto à perceção do espectador, que se perde numa sinfonia alternativa da cidade e que configura a vontade de Pêra em mostrar a verve contemporânea do poeta. Para ele, o poeta sinónimo do século XX, que continua a ser dos "nossos dias". Uma modernidade inesgotável.