O mordomo Santiago vivia feliz com a família Moreira Salles na casa da Gávea, no Rio de Janeiro. Cuidava da casa da família do embaixador, recebia chefes de Estado, nobres, hóspedes distintos, cuidava da alimentação e das flores, mas vivia num mundo só dele. Cada arranjo de flores que fazia era "um coro de vozes". O da entrada da porta da bela casa era La grand cantata a bocca chiusa, de Bach. Porque, mais tarde, à hora da receção todas as flores iam estar abertas para os convidados..Santiago Badariotti Merlo, argentino de origem italiana, conta-o para a câmara de João Moreira Salles. O filho do dono da casa felizmente tornou-se documentarista e filmou, durante cinco dias, o antigo mordomo na sua própria minúscula casa, no Leblon, já depois de reformado, com 80 anos. É em Santiago - Reflexões sobre o Material Bruto, que mostra ao mundo este homem extraordinário, que escrevia o mundo com flores e música e, num plano paralelo, num imenso labor de escrita, passava à máquina as biografias de nobres e dinastias do mundo inteiro. O mordomo datilografou um subtexto da história do mundo entre banquetes e a fina flor. Páginas e páginas grafadas na sua máquina de escrever Remington, a partir das notas que tirava dos livros de bibliotecas de três continentes, em seis idiomas. João Moreira Salles, o Joãozinho, filma as páginas em grandes planos perturbadores enquanto conta a história de Santi e o põe a falar para a câmara..O mordomo está sentado na sua pequena cozinha, três tachos e uma frigideira abaulados pendurados ao fundo, a máquina de escrever aberta, em primeiro plano, e ele pleno de elegância. Não veste o fraque que usava nos dias especiais, não tem laço, não faz vénias, e mantém a pose distinta. Como se todas as histórias de nobres, reis e rainhas encarnassem em si..Durante 50 anos dedicou-se a copiar dos livros das bibliotecas histórias de aristocratas, reis e rainhas. Ao longo de anos, às vezes várias décadas, ia juntando a informação sobre uma determinada figura da história. No final, datilografava tiras de papel com o resumo dos dados para cada uma das entradas do seu dicionário pessoal: "Tribos universais humanas e desumanas com seus chefes e nobreza pagã, 1250 páginas, 30 anos e deus dirá se mais adiante." Organizava as folhas por ordem alfabética e amarrava o conjunto com uma fita vermelha que mandava vir de Paris.."Tenho tudo, botei neles a minha vida, o meu sentimento", diz para a câmara. Seis mil anos de gente que, para ele, nunca morreu. Aos fins de semana conversava com a nobreza datilografada ("apesar de estarem escritos em tantos idiomas, eles me compreendem"), levava-a a apanhar sol, arejava-a. Poética loucura de um homem que se tornou copista, num frenesi quase doentio de retirar do esquecimento todas as histórias, como um Google de papel se tratasse..João Moreira Salles diz que Santiago passou uma vida inteira a lutar para que as personagens não fossem esquecidas. O realizador herdou "restos de milhares de histórias". Slavomir. Olof Hunger. Tchadrag. Reinos que nascem e morrem. Princesas que encantam cidades..De onde vem esse desejo de fixar todas as histórias da realeza em resmas de papel datilografado, o homem da câmara não sabe. "Creio que é um fascínio que vem da infância. As razões são misteriosas e cabe ao espectador do filme especular", escreve-nos na volta do e-mail..Conta que o "tlec-tlec-tlec da máquina de escrever" é um dos sons da sua infância e que sempre soube que o mordomo escrevia, até porque o fazia todos os dias. "Na rotina do dia-a-dia, Santiago costumava se desincumbir de suas responsabilidades até à hora do almoço, de modo que suas tardes eram dedicadas a consultar livros e a escrever. Esse é o som da minha infância - a máquina em ação quebrando o silêncio do corredor onde Santiago tinha o seu escritório.".O mordomo copista "tinha uma imaginação poderosa com a qual transformava a realidade - arranjos de flores não eram apenas arranjos de flores, mas coros de vozes; os quadros na parede não eram os quadros modernos na parede, mas obras da Renascença italiana", diz João. La Gávea era para ele o Palácio Pitti, a casa dos Medici, em Florença, outra paixão - a par da biografia de Lucrécia Bórgia, de boxe, Giotto, música, dança, Fred Astaire a caminhar no parque com Cyd Charisse em Roda da Fortuna (1953)..João fez-lhe um filme. Gravou durante cinco dias, guardou as imagens durante 13 anos. Voltou a elas. Voltou a si. Os caminhos da memória escrevem-se em Santiago e quando acabamos parece que Santiago não existiu. Felizmente foi mordomo. Milhares de nobres, embaixadores e a família Moreira Salles podem confirmar que ele passou pelo planeta Terra..Como era Santiago como mordomo? Como chegou à casa da família Moreira Salles? Era "operístico, exuberante, um homem de gestos largos. Meu pai servia como diplomata em Washington e o conheceu lá. Na época, Santiago trabalhava na Embaixada de Cuba. Meu pai perguntou se ele consideraria mudar-se para o Rio de Janeiro, cidade para a qual a família regressaria em breve. Santiago fez apenas duas perguntas: se meu pai tinha uma biblioteca e se ele, Santiago, seria capaz de consultá-la. Diante da resposta positiva para ambas as perguntas, Santiago mudou-se para o Brasil"..Santiago Badariotti Merlo nasceu em 1912 e morreu em 1994. As 30 mil páginas estão depositadas no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, disponíveis para consulta.