Sandra e a transcendência

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Na tua rua há várias creches e basta que as nuvens, como nesta tarde de verão, escureçam o bairro, asfixiando os morros, para que, de repente, já não estejas no Rio de Janeiro. É verdade que faz calor, vês gente sem camisa e de chinelo no pé, no entanto, porque são cinco da tarde e os miúdos saem da escola, há um instante em que tens a certeza de que estás no outono de 1983, numa rua dos arredores de Lisboa, e que a voz da Sandra, tua colega de carteira, pode ser encontrada na algazarra das crianças. No Rio, vês os miúdos de calções, mas na pele sentes casacos e camisolas Thermotebe e botas ortopédicas. Os corpos quentes condensam-se no frio da rua, as bochechas estão vermelhas, os cabelos pegajosos. Os miúdos trazem com eles o ar saturado da sala, espesso de giz e suor, e as mãos manchadas de canetas de feltro.

Tudo enorme ao teu redor, a mesa da professora e os adultos gigantes, o bigode do teu pai roçando-te as bochechas e o estalido de um beijo; e a tua mãe, que foi ao cabeleireiro e que ainda cheira a laca, pergunta sobre os trabalhos de casa; o teu irmão mais velho desafia-te para um jogo de hóquei em patins, prometendo dar-te dez golos de avanço. E amanhã a Sandra estará ao teu lado na carteira da escola, cheirando a champô Johnson para bebé.

É apenas um instante, porque depois os ônibus voltam a roncar na Gávea e os pequenos macacos pulam nas árvores e o cheiro untuoso do mato volta a afogar-te, colocando-te outra vez no trilho das obrigações - comprar água, passear o cão, escrever a crónica.

Não é a primeira vez que isto acontece. E, porque isso impressionaria a Sandra, gostas de pensar que tens um superpoder, embora saibas que se trata apenas de um atributo comum a toda a espécie. A Sandra era loira como as bonecas da tua prima. Tinha sardas no nariz, incisivos terroristas e não te prestava atenção.

Se uns comem madalenas para viajar no tempo em busca de transcendência, outros encontram no cheiro das torradas, no final de uma tarde carioca, um portal instantâneo para as carcaças de forno a lenha, com doce de morango, numa cozinha onde a chuva coava a luz dos faróis lá fora e tu desenhavas vogais entre duas linhas. A caneta era ainda um objeto estranho, um peixe escorregadio, e o cheiro da laca sobre o teu ombro, verificando os gatafunhos da caligrafia. Ditados, composições sobre as férias e, no recreio, a Sandra no seu Kispo azul-escuro, saltando ao elástico com galochas Colibri, que tinham olhos, boca e que faziam os seus pés parecerem desenhos animados. A Sandra sem sequer perceber que tinhas marcado mais um golo no intervalo da manhã.

Não são apenas os miúdos no Rio e a luz escura, como a pelagem de um cão, que interrompem a ordem das coisas e abrem um lanho no espaço e no tempo. Pode ser uma música, uma dentada num pêssego, a reverberação da luz sobre o alcatrão. Por vezes, julgas que estes instantes são o botão de pausa do fluxo incessante da consciência, um alívio dos diálogos que tocam na tua cabeça o dia inteiro como uma estação de rádio: imaginas o que devias ter dito e aquilo que vais dizer, fantasias situações e cenários, tens simultaneamente dentro do cérebro um narrador, um gerente administrativo, um psicólogo e um crítico multidisciplinar, debitando informação, enviando e-mails e lembrando-se de baixar a tampa da retrete.

Afinal, talvez a Sandra fosse Sónia e o seu Kispo azul fosse uma samarra cinzenta com pelo na gola. Talvez não fosse loira de franja, mas morena com as orelhas furadas. Pouco importa. São estados breves de iluminação, tão plenos de tudo que não precisam de rigor biográfico. São como sonhos, poderosos pelo que evocam, não pelo que mostram.

Deixaste de sentir o cheiro da laca porque a tua mãe morreu. O teu pai cortou o bigode há séculos. Vive a oito mil quilómetros. O teu irmão tem um filho e talvez já não lhe apeteça jogar hóquei em patins. A Sandra - estás seguro - fez um curso superior e arranjou os incisivos encavalitados, que iam tão bem com as sardas no nariz.

E, no entanto, nesta cidade, apesar das buzinas das cigarras tropicais que parecem explodir com o calor, apesar da distância daquilo que deixou de existir, sabes que hoje tudo voltou a acontecer outra vez - a laca, o bigode, os patins, os incisivos da Sandra, o teu corpo ainda quente da sala de aula apunhalando o frio da rua para que chegasses mais depressa àqueles que te iam buscar.

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