Sanções autoimpostas

O regresso do espectro de um Brexit sem acordo, em plena covid-19, tem tudo para ser uma mistura explosiva para o Reino Unido e para os países mais expostos às suas dinâmicas. O que resulta de mais uma jogada arriscada de Boris Johnson? E que efeitos internos e externos pode provocar?
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O Brexit regressou com estrondo e os efeitos ouviram-se, além de Bruxelas, em Washington e em Pequim. Nancy Pelosi, líder da Câmara dos Representantes, foi rápida a confirmar que nenhum acordo de livre comércio com o Reino Unido será ali aprovado caso o acordo de paz para a Irlanda do Norte seja o dano colateral das decisões unilaterais de Boris Johnson. Já a imprensa chinesa acolheu a possível violação da lei (o acordo de retirada da UE é um tratado transposto para a ordem jurídica britânica) como uma prática legitimadora das decisões que toma, nomeadamente em relação a Hong Kong. Se um país fundador da rule of law o faz, que moral existe para criticar terceiros? É este o estado da governação em Londres: voluntarista, agressiva, imprevisível, masoquista. Precisamente por não pactuar com isto, Jonathan Jones, líder do departamento jurídico governamental, demitiu-se de imediato.

Na prática, o que está em cima da mesa é a aprovação para a semana de uma lei nos Comuns que dá interpretação discricionária aos ministros sobre o protocolo referente à Irlanda do Norte, que consta do acordo de retirada. O mesmo é dizer que a parte mais sensível de um texto arrancado a ferros, com o qual Johnson conquistou a maioria absoluta, passa a letra morta por decisão unilateral, sem qualquer recurso a negociação com os 27. O estrondo fez-se igualmente sentir internamente, com vozes críticas dentro do Partido Conservador a anteciparem uma saída sem acordo comercial a partir de 2021. Para um primeiro-ministro que ainda há uns meses se referia ao livre-comércio como a "forma que Deus tem de fazer diplomacia", para mais num partido adepto dessa tradição, mostra bem a transformação ideológica em que a direita inglesa mergulhou.

O que pretende, então, Boris Johnson com esta jogada arriscada? Desde logo, reconhece que as oito rondas negociais com a UE não tiveram qualquer avanço, nem no sentido de se fechar um acordo comercial nem no acolhimento das exigências feitas por Londres. O objetivo deste passo é levar o alarmismo de um não acordo a Bruxelas e com isso forçá-la a ceder, nomeadamente nos dois tópicos mais quentes do momento: quotas para a pesca (britânicos querem duplicá-las) e na forma como o governo pretende alocar fundos públicos no quadro da covid sem ter de se balizar pelos procedimentos da UE. Por outras palavras, o primeiro procura garantir mais força no mar da Irlanda e o segundo blindar a autonomia de decisão britânica à influência de Bruxelas. São objectivos perfeitamente legítimos, sobretudo do ponto de vista de um governo de matriz nacionalista inglesa. O que não é legítimo, nem legal, é fazê-lo à custa de acordos negociados pelo mesmo governo, fazendo dessa prática e do respeito pela lei banalidades políticas e jurídicas. O sinal emitido é muito mais negativo do que a leitura que Londres faz do tratado de retirada. Faz do Reino Unido um ator não confiável em futuras negociações com EUA, China ou Japão; acelera uma reputação de arbitrariedade jurídica num país com outros pergaminhos históricos; limita futuros ganhos para Londres em sede dos necessários acordos paralelos que terão de ser negociados com Bruxelas em relação, por exemplo, aos serviços financeiros ou ao big data.

O risco que Johnson está disposto a correr não parece implicar ganhos alguns, para além de uma mensagem oca de soberanismo reconquistado. No geral, o golpe na negociação é um enorme exemplo de masoquismo num país que teve uma queda de 21% do PIB no segundo trimestre deste ano e que ao fim de quatro anos após o fatídico referendo do Brexit ainda não decidiu se quer a via australiana, canadiana ou de Singapura no relacionamento com a UE, sendo que os dois últimos já fecharam acordos de livre-comércio com Bruxelas e o primeiro reconheceu já a inevitabilidade desse passo, após uma parceria que é curta nos proveitos e no potencial do comércio entre as partes. O que Johnson prova é que a ameaça do caos provocada por um não acordo é mais importante do que a saúde das empresas e das indústrias mesmo em tempo de recessão. Onerar a economia com tarifas e prejudicar setores exportadores como o agrícola ou o automóvel é a vitória da crueldade sobre a inteligência, da fixação cega por uma ideia mitificada de soberanismo bacoco, quando os custos do presente e do futuro cruzarão o furacão da pandemia com os efeitos desgarrados do Brexit.

O último ano tem mostrado a tentação pelo risco de Boris Johnson, dando-lhe instrumentos para jogadas altas, mas politicamente proveitosas. Os seus passos foram, num certo sentido, sempre previsíveis e sem especial dano para o calendário e conteúdo do acordo de saída da UE. Por isso os Estados membros foram acomodando as passadas de Londres. A partir do momento em que o período de extensão à negociação comercial não foi acionado por Johnson e os encontros com Barnier pouco ou nada trouxeram de relevante, o primeiro-ministro britânico volta a escolher radicalizar para colher os frutos desejados. Acontece que desta vez esticou a corda, mexeu com um tema delicado, ainda por cima envolvendo diretamente um Estado membro como a Irlanda, expondo um desprezo por anos de negociação mastigada e desgastante. Este exemplo revela, aliás, que a condução política de Boris Johnson, ao contrário do que ele costuma apregoar, não defende em nada o interesse nacional, só o prejudica. Mais: confirma mais uma vez que a definição de Brexit não é mais do que o primeiro caso em que um país aplica, de livre vontade, sanções a si próprio.

Nesta última jogada de risco, abre novas divisões nos conservadores, acelera a tentação independentista escocesa, massacra a economia em tempos de covid e abre o espaço que faltava à nova liderança trabalhista para dissecar o Brexit de forma diferenciada do governo, linha que ainda não foi suficientemente explorada. Keir Starmer, o trabalhista que sucedeu ao desastre de Jeremy Corbyn, fez subir rapidamente o partido nas sondagens, aproximando-o dos conservadores, e é quem melhor aprovação tem desde Tony Blair. Se souber aproveitar o momento, deve também um agradecimento a Johnson.

Investigador universitário

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