Em 2002, no rescaldo dos atentados do 11 de Setembro e da propalada "guerra ao terrorismo", o Congresso dos EUA aprovou legislação que ficou conhecida como "lei de invasão de Haia", permitindo ao presidente norte-americano autorizar o uso de força militar para libertar qualquer norte-americano detido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), o que em teoria permite uma invasão aos Países Baixos, um Estado aliado..Fundado em 1998 sob o Estatuto de Roma, que estabelece as suas bases, e em funcionamento desde 2002, o Tribunal Penal Internacional tem sede em Haia, como o Tribunal Internacional de Justiça da ONU ou o Tribunal Penal Internacional para a antiga Jugoslávia. O seu fim é o de investigar e julgar crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio, mas como tribunal de última instância funciona sob o "princípio da complementaridade", ou seja, só pode exercer a sua jurisdição quando um país não quer ou é manifestamente incapaz de investigar e julgar os crimes.. Mas ao contrário de outros órgãos judiciários internacionais, o TPI tem sido alvo de críticas, juntando no mesmo coro Estados Unidos, Israel e países com lideranças autoritárias. Alguns dirigentes africanos queixaram-se durante anos de que os julgamentos se concentraram no continente africano e alguns exigiam imunidade para os líderes, algo que passou a vigorar no Tribunal Africano dos Direitos do Homem. Três países chegaram a ameaçar sair do tratado, mas só o Burundi concretizou a ameaça..Fora de África, o presidente das Filipinas Rodrigo Duterte retirou no ano passado o seu país da alçada do TPI em resposta à abertura da investigação sobre as suspeitas de crimes contra a humanidade na chamada guerra contra as drogas, na qual se suspeita do assassínio de milhares de pessoas de forma extrajudicial. No entanto, essa medida não impedirá a continuidade da investigação e o eventual processo, uma vez que a saída do tratado não tem efeitos retroativos..O presidente Bill Clinton, no ano 2000, subscreveu o Estatuto de Roma, mas o documento nunca seguiu para ratificação no Senado e, durante a presidência de George W. Bush, Washington informou as Nações Unidas de que não só não iria ratificar o tratado como não o reconhecia - um gesto também seguido por Israel, Rússia e Sudão..Durante os mandatos de Barack Obama as relações melhoraram e alguns observadores usaram a palavra "cooperação", que está proibida por lei. Em 2012, quando o senhor da guerra Bosco Ntaganda se entregou na Embaixada dos EUA no Ruanda este foi levado para o TPI. Atualmente, o ruandês aguarda pelo apelo à condenação a 30 anos de prisão por crimes de guerra no Congo. Um helicóptero dos EUA foi determinante para a detenção, em 2015, do ugandês Dominic Ongwen, do Exército de Resistência do Senhor. Este ex-guerrilheiro, que foi raptado em criança para ser soldado, ainda aguarda sentença..As relações entre Haia e Washington voltaram a ficar gélidas com a chegada de Donald Trump ao poder. Sendo certo que os EUA nunca reconheceram a autoridade do tribunal, a administração Trump deu um passo inédito ao anunciar sanções à procuradora-geral Fatou Bensouda e a outro alto funcionário do TPI, o diretor do departamento de Jurisdição e Cooperação, Phakiso Mochochoko..Ambos passaram a fazer parte de uma lista do Departamento do Tesouro que tem como consequência verem congelados eventuais bens que tenham nos EUA ou sob lei norte-americana. Bensouda também já tinha sido proibida de entrar nos Estados Unidos..Ao anunciar as sanções numa conferência de imprensa, na quarta-feira, o secretário de Estado Mike Pompeo acusou, sem provas, o TPI de ser uma "instituição completamente falida e corrupta". E garantiu: "Não toleraremos as suas tentativas ilegítimas de submeter os norte-americanos à sua jurisdição.".No centro do conflito está à investigação da procuradora Bensouda sobre alegados crimes de guerra cometidos no Afeganistão, o que pode implicar soldados norte-americanos e agentes da CIA. O tribunal abriu investigações sobre alegadas atrocidades em 12 países, incluindo o Afeganistão e a Palestina..De acordo com documentos do tribunal, Bensouda tenciona investigar ataques talibãs contra civis, incluindo homicídios e raptos. Mas a magistrada gambiana também quer investigar métodos que os militares e a CIA utilizaram para interrogar os detidos. Segundo a procuradora "há uma base razoável para acreditar que, a partir de maio de 2003, membros das forças armadas dos EUA e da CIA cometeram crimes de guerra de tortura e tratamento cruel, ultrajes à dignidade pessoal, violação e outras formas de violência sexual, de acordo com uma política aprovada pelas autoridades dos EUA"..A Amnistia Internacional, pela voz de Solomon Sacco, disse que o tribunal "inverteu um erro terrível". Em abril, o painel de três juízes da câmara de prejulgamento havia recusado abrir o processo. Alegara então que "as presentes circunstâncias no Afeganistão são de molde a tornar extremamente limitadas as perspetivas de uma investigação e uma acusação bem-sucedidas"..Quando a decisão foi tomada pelo tribunal, em março, Pompeo disse ser "uma medida estarrecedora por parte de uma instituição política inimputável, disfarçada de órgão legal".."Vamos tomar todas as medidas apropriadas para assegurar que os cidadãos norte-americanos não sejam chamados perante este órgão político para resolver vinganças políticas", disse então Pompeo.. Apesar de os EUA não serem signatários do Estatuto de Roma, o Afeganistão faz parte dos 123 países que o são, pelo que quaisquer crimes que caiam na jurisdição do tribunal, praticados por quem quer que seja, podem ser investigados pelo TPI..Em dezembro, a procuradora-geral apresentou um pedido de abertura de uma investigação sobre possíveis crimes cometidos em Gaza em 2014, quando a guerra travada pelo exército israelita e o Hamas matou 2100 palestinianos, dos quais 50% e 80% civis. A procuradora-geral determinou que "todos os critérios regulamentares" para proceder a uma investigação formal tinham sido cumpridos. No entanto, procurou então obter uma decisão dos juízes do tribunal sobre o âmbito da jurisdição territorial do TPI, tendo em conta o estatuto da Palestina (que é signatária do TPI)..A chamada câmara de prejulgamento deverá decidir em breve sobre o pedido..Em resposta, o presidente dos EUA assinou em junho uma ordem executiva a autorizar sanções ao TPI, com o duplo objetivo de exercer pressão quanto à autorização do pedido de investigação, mas também para impedir que o processo prossiga. O que é também inédito é que o documento, sem o referir, está a defender Israel.."Determino que qualquer tentativa do TPI para investigar, capturar, deter ou processar qualquer pessoal dos Estados Unidos sem o consentimento dos Estados Unidos, ou de pessoal de países que sejam aliados dos Estados Unidos e que não sejam partes no Estatuto de Roma ou que não tenham consentido de outra forma com a jurisdição do TPI, constitui uma ameaça invulgar e extraordinária à segurança nacional e à política externa dos Estados Unidos, pelo que declaro uma emergência nacional para lidar com essa ameaça", declarou Donald Trump em 11 de junho.."Isto não é inédito. As ameaças de Pompeo, no ano passado, aparentemente funcionaram: os juízes de prejulgamento bloquearam a investigação ao Afeganistão. Estudiosos de direito e defensores dos direitos humanos criticaram a decisão e especularam que os juízes tinham capitulado à pressão dos EUA. O TPI acabou por reverter a decisão, mas o atraso bloqueou qualquer investigação sobre o Afeganistão durante algum tempo", escreveu o diretor do International Justice Lab Kelebogile Zvobgo e o professor de Harvard Stephen Chaudoin no Washington Post.."Trump pode estar a executar aqui a mesma jogada - dando um passo arrojado na esperança de que pressiona a câmara de prejulgamento a negar a autorização da investigação palestiniana", prosseguiram..Numa investigação, os autores concluíram que a maioria dos cidadãos norte-americanos está do lado do TPI e mostra-se preocupada com o papel dos EUA em relação aos direitos humanos..Numa declaração na quarta-feira, o presidente da Assembleia do TPI criticou as sanções. "Rejeito veementemente tais medidas sem precedentes e inaceitáveis contra uma organização internacional baseada em tratados. Elas apenas servem para enfraquecer o nosso esforço comum de luta contra a impunidade por atrocidades em massa", disse o juiz sul-coreano O Gon-Kwon..Mas foi a França a liderar as críticas às sanções dos EUA à procuradora-geral do Tribunal Penal Internacional, dizendo que Washington tinha lançado um "ataque grave" ao organismo global. "As medidas anunciadas constituem um grave ataque ao tribunal e aos Estados signatários do Estatuto de Roma e, além disso, são um desafio ao multilateralismo e à independência do poder judicial", disse o ministro dos Negócios Estrangeiros francês Jean-Yves Le Drian. Reagindo às sanções dos EUA, a União Europeia disse que iria defender o tribunal contra tentativas de o minar. "O Tribunal Penal Internacional enfrenta desafios externos persistentes e a União Europeia mantém-se firme contra todas as tentativas de minar o sistema internacional de justiça penal, dificultando o trabalho das suas instituições centrais", disse Peter Stano, porta-voz do chefe diplomático da UE Josep Borrell..Também a Human Rights Watch não poupou a Casa Branca. "O uso perverso de sanções por parte da administração Trump, concebidas para alegados terroristas e chefes do tráfico de drogas, contra procuradores que procuram justiça para crimes internacionais graves, amplia o fracasso dos EUA em julgar a tortura", disse Richard Dicker, diretor de justiça internacional daquela organização. "Ao invocar uma 'emergência nacional' para punir os procuradores de crimes de guerra, a administração mostra um total desrespeito pelas vítimas", conclui.