San Marino. Uma crisálida no coração de Itália
Há quem diga que um dia é bastante para ver San Marino. Até há passagens diárias de ida e volta a partir de Rimini, a cidade italiana mais próxima, a menos de uma hora. Porém, assim não há noite a desfrutar. Se tudo se confinar à subida ao castelo e a caminhar pelas ruelas e becos da zona medieval no alto do Monte Titano, então talvez seja possível. Quando se pensa que este micro-Estado é considerado o mais antigo do mundo, porque fundado em 3 de setembro de 301 d.C. por Marinus de Rab, há muita história para sentir e a contemporaneidade para cantar. Num dos bares, durante uma das noites, comecei por admirar a performance de cantores de um "karaoke" que se baseava em músicas da Eurovisão levadas por San Marino, desde 2008, o ano da primeira participação. Eu era cúmplice da loucura que invadia as mentes daqueles jovens. Curiosamente, a primeira canção em nome deste país foi, precisamente, "Complice" e cantada em italiano. De canção para canção, era preciso "estar a postos", porque, nem mais, é o título do tema da segunda participação são-marinense, na voz de Senhit Zadik Zadik, conhecida como Senit, uma bolonhesa com ascendência na Eritreia. Ela compartilha com o turco Serhat e com a são-marinense Valentina Monetta mais do que uma representação eurovisiva por San Marino. Anunciaram que Valentina estaria presente naquele espaço de fãs eurovisivos, expressando-se quase todos em italiano, quando a outra das línguas oficiais é o inglês. Provavelmente, os são-marinenses dialogavam com os muitos italianos que ali se tinham deslocado. Valentina chegou e cantou. Ela é encantadora. Representou o país em 2012 (inglês), 2013 (italiano), 2014 (inglês) e 2017 (inglês), tornando-se numa diva nacional, maior do que a dimensão do país, o que não é difícil. Apenas conquistou a Grande Final em 2014, com "Maybe". Consegui chegar à fala com ela. Disse-lhe que a sua participação de 2013, cantada em italiano, fora para mim a melhor. E ela cantou-me "Crisalide (Vola)" ao ouvido: "L'universo siamo noi/ Vola, che la forza arriverà/ Mai più sola nella vera libertà/ La farfalla nuova lascia giù/ La crisalide e di più/ Vuota senza me/ Vola nella gioia sarai/ Mai più sola nell'immensità di noi/ In un attimo l'amore come nuovo sole/ Tutto cambierà/ Vola, vola, vola insieme a me." Fiquei inebriado..., mas, de repente, acordei. Afinal, era um sonho e a bela Valentina não me cantava ao ouvido que a força da liberdade viria até mim, tal qual a borboleta ao sair da crisálida, e voar. A metamorfose acabaria por chegar. Abri as cortinas do quarto do hotel e no vidro vi-a, a borboleta, sereníssima, como que a convidar-me a ir daquele ponto minúsculo do Planeta, ou seja, daquela crisálida são-marinense. Pensei que, afinal, um país e uma mulher podem ser crisálidas e borboletas. Que o país seja borboleta de dia e crisálida de noite. Que a mulher seja crisálida de dia e borboleta de noite. Rompa-se a crisálida e vamos bater asas, tal como este país quando canta fora de si.
Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.