Sambinha para Beethoven, nostalgia para Fernando Pessoa

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Dois músicos brasileiros numa noite inédita na Casa Fernando Pessoa

Silêncio. Shhhhh. As palavras seguiram-se, ditas numa dicção sem tropeço, rápidas, sincopadas. E o violão seguiu-as sem nunca se sobrepor a elas. E depois disso? Shhhhh. Nada, silêncio. Um calar para digerir a voz, o violão e as palavras que foram de Carlos Drummond de Andrade e agora se materializam na voz de Wisnik. Momento de pausa. Que a seguir virão outras palavras, as de Pessoa mais uma vez pela voz do compositor, músico, professor catedrático especialista em Machado de Assis, José Miguel Wisnik, e do violão do também compositor e catedrático Arthur Nestrovski. Estiveram ontem na Casa Fernando Pessoa para uma aula-show única. "Tentámos mostrar a relação entre a música e a literatura", explicou mais uma vez Wisnik ao DN. "Depois de cada canção vamos conversando sobre ela, comentando". E de novo haverá música e de novo foi assim, depois de muitas vezes no Brasil, uma vez única, na Casa Fernando Pessoa, na abertura do Letras em Lisboa, a transposição do modelo do Fórum Literário de Ouro Preto, no Brasil, para Portugal. Arrancou ontem e vai até domingo.

Wisnik e Nestrovski cantam e tocam antes do espectáculo a sério. Há três anos e meio que estão juntos apesar de terem projectos separados. Aqui, aquietam-se, inquietam-se. São cinco a tarde e dão-se as últimas notas antes do espectáculo. Por onde começar? "Diga você, ó cantor", ri Nestrosvski, já de violão. E Wisnik anuncia Assum Branco. É um pássaro, explica e explica que ali, naquele caso, as notas nasceram primeiro. E há a primeira surpresa: a voz. Límpida numa harmonia comovente com o violão. Ambos se esperam, Voz e violão, num namoro musical onde entrará em breve um terceiro elemento, o piano. Sem mais. Não haverá mais. Voz, violão e às vezes piano. "Tudo em volta é só beleza, sol de Abril", ouve-se. Palavras de Wisnik para uma música que começou por ser de Luiz Gonzaga e acabou completada por Wisnik.

É conversa da boa, como a que se segue, uma conversa com a 5ª Sinfonia de Beethoven só reconhecível nas primeiras notas e que logo depois se transforma numa espécie de sambinha, ou baião, um baião de quatro toques que podia repetir-se até ao infinito sem canseiras, porque a voz traz sempre um elemento novo. Poderia ser eterno e não é porque não pode. Mas é música de festa que acaba com um uhhh de dedo no ar. Wisnik celebra. Nestrosvski ri. "A tendência é incorporar as coisas e gerar assunto." A tal conversa que se há-de seguir. Que se seguiu. Porque pela palavra se começa e pela palavra se termina.

E, finalmente, Fernando Pessoa (na versão Alberto Caeiro) numa Noite de São João que se reconhece de imediato som luso, nostalgia no violão de Nestrovski. É inédito, nunca feito, não se encontra à venda em nenhuma loja de discos. Único. Só violão e cantor que canta sentado, esfregando as mãos uma, outra vez, sobre as pernas. "Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,/Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos./E um grito casual de quem não sabe que eu existo." E há o sotaque, outro na língua de pessoa onde quintal fica quintau. É a música da língua, dizem os músicos. Os mesmos que não disseram nada quando acabaram de cantar e de tocar Carlos Drummond de Andrade. E calaram-se porque não havia mais nada para dizer. "É a hora em que o sino toca/mas aqui não há sinoshá somente buzinas,/sirenes roucas, apitos/ aflitos, pungentes, trágicos,/uivando escuro segredo; /desta hora tenho medo." E quase não há espaço para respirar e os dedos dedilham e a voz continua quase sem fôlego. "É a hora em que o pássaro volta,/mas de há muito não há pássaros;/ só multidões compactas/escorrendo exaustas/como espesso óleo/que impregna o lajedo; /desta hora tenho me- do..." Shhhhh.

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