Samba para europeu ouvir

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Como carioca de gema, de passado vivido na favela, onde a pobreza vive lado a lado com a alegria do samba, Seu Jorge aprendeu desde cedo que o ritmo está entranhado nas veias de qualquer brasileiro. Ainda no berço, assistia com prazer aos concertos que o pai e um grupo de amigos davam no seu bairro, sempre com uma mulata a dançar, confirmando a ideia de que, no Rio de Janeiro, o Carnaval é todos os dias.

Depois de integrar o grupo Farofa Carioca, que misturava funk, reggae, rap e muita dança, começou por gravar a solo um disco assumidamente carnavalesco, com um título que não deixava margens para dúvidas Samba Esporte Fino. Porém, este ano, Seu Jorge tomou um rumo diferente procurou consolidar o ritmo popular brasileiro com arranjos subtis e uma melancolia polvilhada de bossa nova.

A alegria rítmica transforma-se em introspecção; as letras coloridas e insinuantes do disco anterior deram lugar a arranjos sem artifícios e o título, mais uma vez, não esconde a essência do disco Cru. Seu Jorge quis amadurecer e realizar um trabalho que ilustrasse a visão europeia (em especial do público de França, país em que Cru foi produzido) da música brasileira, aspecto que desenvolveu, há três meses, numa entrevista ao DNmúsica "Acho que estava procurando uma música brasileira mais nua, com muita coisa crua na produção e mais voltada para a emoção. É uma música que não é tecnicamente bem elaborada, mas emocionalmente bem feita."

As mudanças sentem-se no disco, mas em palco Seu Jorge promete entregar-se à festa e ao improviso, como actor que também é "O palco dá-me tempo, enquanto o disco congela e lembra a sensação do que ficou na época em que o gravei", acrescentou nessa mesma entrevista. Esta noite, às 22.00, vem apresentar Cru à Aula Magna de Lisboa, mas há mais duas datas a assinalar na sua passagem pelo País amanhã, Seu Jorge actua na Casa da Música do Porto e, no domingo, sobe ao palco do Teatro Micaelense em Ponta Delgada.

E o que tem Cru para oferecer? Dez canções polidas, que balançam entre o samba estilizado e abossanova introspectiva com o cavaquinho presente em quase todo o disco, assim como a guitarra acústica (ou o violão, como se apelida em português com sotaque). Pelo meio, há ainda um conjunto de pequenas referências, sinais de bom gosto musical o tema italiano Fiore de la Città remete para João Gilberto e Chatterton, composição de Serge Gainsbourg, surge como uma pequena pérola alienígena sobre o suicídio, com alusões novas como a que é feita a Kurt Cobain.

A melhor homenagem surge discreta a meio do disco e é ambiciosa. Trata-se de uma nova versão da canção Don't, de Elvis Presley. Seu Jorge escolheu-a por considerar que o "rei" também subiu a pulso, depois de ter sido criado "numa espécie de gueto"e de, apesar de ser branco, ter mergulhado nas raízes da canção negra.

Para o concerto desta noite e dos próximos dias, no Porto e em Ponta Delgada, o que se promete é uma festa da nova música brasileira, mas sem ceder a ideias feitas. Tal como a ideia que sustenta o álbum Cru, Seu Jorge defende "um trabalho de música universal". Em entrevista ao DNmúsica, sublinhou que "a música brasileira vem para se tornar uma coisa de todos nós, não necessariamente para o Brasil e para um determinado país". E define o seu estilo dengoso, e claramente mais sofisticado do que no disco de estreia Samba Esporte Fino, de "blues de favela".

No cinema, Seu Jorge deu também nas vistas ao surgir no filme Um Peixe Fora de Água, de Wes Anderson, de violão ao peito e a cantar em português músicas de David Bowie. E pode ser que, logo à noite, o cantor brasileiro decida repetir o gesto e entregar a alma de artista a músicas como Life on Mars, Starman ou Rock'n'Roll Suicide. Apesar de partir do glam rock de Bowie no início da década de 70, Seu Jorge (ou Pelé dos Santos, a sua encarnação despretensiosa no filme em que auxilia Bill Murray a organizar uma expedição ao fundo dos oceanos) fará uma leitura livre, rouca e surpreendente de um músico que, antes de participar em Um Peixe Fora de Água, apenas conhecia a canção Let's Dance.

O que não vai faltar nesta sua visita a Portugal é o samba, seja na sua componente mais trabalhada de Cru ou no seu modelo festivo de Samba Esporte Fino. Do seu disco de estreia, o cantor gosta de repescar o single Carolina, um tema poderoso com direito a todos os instrumentos que se escutam num desfile de Carnaval. Porque Seu Jorge (tal como o nome artístico indica) respira ritmo tropical por todos os poros. A alma é brasileira.

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