Salvar vidas e dar condições condignas às vidas salvas

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Ao fim de seis dias de conflito na Ucrânia, causado pela ilegítima invasão por parte da Rússia (cujo papel se impõe reprovar sem qualquer margem para relativismos éticos), já é possível concluir que estamos perante uma enorme tragédia e um momento definidor da nova ordem internacional. Muitas análises foram e continuarão a ser realizadas sobre as consequências regionais e globais deste conflito (na geopolítica, na defesa, na energia e na economia). Aliás, neste mesmo espaço, denunciei, há duas semanas, o imperdoável adiamento da construção das interligações de eletricidade e de gás (acordadas na UE em 2014), entre a Península Ibérica e França, que permitiriam reduzir, em 40 mil milhões de euros por ano, os custos com a eletricidade e, em 40%, a dependência energética europeia face ao gás natural da Rússia. Mas, hoje, quando 44 milhões de ucranianos se encontram numa situação de enorme insegurança, não quero perder tempo a discutir matérias cujo teor é retrospetivo ou prospetivo. Prefiro concentrar-me, em especial no âmbito das minhas responsabilidades na OCDE nas políticas de ajuda ao desenvolvimento e de ajuda humanitária, no tema essencial: salvar vidas e conferir toda a dignidade às vidas salvas. As vidas daqueles que ficaram na Ucrânia e as vidas daqueles que foram forçados a fugir da guerra.

É verdade que as primeiras reações internacionais a esta crise revelaram níveis de celeridade e de solidariedade (pelo menos para já) significativamente superiores aos verificados na crise dos refugiados da Síria. Tem sido notável a generosidade dos países vizinhos - Polónia, Hungria, Roménia, Eslováquia e Moldávia - no acolhimento dos refugiados (mais de 800 mil no momento em que escrevo), assim como de outros países que avançaram com significativos pacotes de ajuda humanitária ou com a simplificação das regras de acolhimento de refugiados. A esse propósito, congratulo-me com a decisão de agilizar o acolhimento de refugiados em Portugal (removendo o limite de entradas, atribuindo de forma expedita toda a documentação e conferindo o acesso a uma plataforma de empregos disponíveis).

Contudo, temos de estar conscientes da verdadeira dimensão da crise humanitária induzida por este conflito e que exigirá um nível de solidariedade significativamente maior. Em apenas seis dias de conflito, pelo menos 800 mil pessoas (essencialmente, idosos, mulheres e crianças) atravessaram a fronteira e refugiaram-se nos cinco países acima referidos. Sendo que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados estima que o número de refugiados venha a ultrapassar 4 milhões de cidadãos ucranianos. Por outro lado, as organizações internacionais apelaram, há dois dias, para a mobilização de 1700 milhões de dólares de ajuda de emergência e humanitária (para a Ucrânia e para os refugiados que se deslocaram para países vizinhos). Contudo, até ao momento, a comunidade internacional apenas se comprometeu com um volume de 500 milhões de dólares, dos quais apenas 50 milhões de dólares foram efetivamente atribuídos.

Mas não basta mobilizar e atribuir volumes mais significativos de ajuda humanitária e de emergência. Além do investimento na prevenção de conflitos, impõe-se uma nova abordagem no acolhimento dos refugiados ucranianos. Ainda que absolutamente essencial e meritório, não nos podemos limitar a conferir-lhes um refúgio de paz e de segurança ou a fornecer-lhes água, alimentação, vestuário e acesso a habitação e a cuidados de saúde. Temos a obrigação de desenvolver políticas de integração plena, através do acesso à educação, ao emprego e a condições de sustento económico e de qualidade de vida.

Numa altura em que tantos lutam pela segurança e pela liberdade na Ucrânia, assumamos a nossa responsabilidade, salvando vidas e conferindo todas as condições de dignidade às vidas salvas.


Diretor da Cooperação para o Desenvolvimento da OCDE

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