Salvador Sobral e a ventosidade anal
Nem sempre é fácil adequar este espaço de comentário à atualidade. Como é costume dizer-se, "o tempo da justiça não é o tempo da comunicação social". Fica sempre bem fazer esta proclamação, sobretudo se o emissor for, em regra, um ator do sistema judiciário. Nesta semana, a tarefa ficou um pouco facilitada devido a uma pequena ajuda de Salvador Sobral. Sim, esse mesmo, antigo concorrente do programa Ídolos, vencedor do Festival da Eurovisão, que num concerto de solidariedade para com as vítimas dos recentes incêndios equacionou a hipótese de "dar um peido" e ver "o que acontece". Portanto, como já perceberam, vamos fazer uma análise crítica à jurisprudência da flatulência e não, obviamente, à flatulenta jurisprudência.
Como ponto de partida, que fique bem claro, como um dia escreveu um polémico juiz de Braga numa das suas decisões: "Os pobres bufam-se, os ricos têm flatulência." Inerente a este pensamento está, como é bom de ver, uma noção classista da justiça: os pobres são condenados em meia dúzia de meses, os mais abastados aplicam o seu dinheiro em taxas de justiça, custas e advogados. O que não deixa de ser um bom investimento, tendo em conta as atuais taxas de juro.
Nos tribunais portugueses escasseiam decisões relativas ao tema. Há, aqui e ali, algumas, mas têm que ver com problemas de saúde na sequência, por exemplo, de acidentes de viação. Há uma referência a um acordo do Tribunal da Relação de Évora de 1989, disponível apenas na Coletânea de Jurisprudência, Ano XIV, 1989, Tomo IV, pp. 275 a 278. Diz-se nessa preclara peça que "poderá constituir o crime de injúria expelir ventosidades anais em postura ofensiva e com desprezo pelo visado". Isto porque, de acordo com a descrição dos factos em causa, um homem dirigiu-se a outro dizendo-lhe: "Se queres falar comigo, vem cá abaixo", ao mesmo tempo que "levantando uma das pernas largou uma ventosidade anal".
Não terá sido o caso de Salvador Sobral. O vídeo ventosidades não permite esclarecer se houve algum movimento da perna que, de alguma forma, ainda que numa mera tentativa, indiciasse o ato. O artista quis apenas ver o que acontecia, não adotando propriamente uma "postura ofensiva", seja lá o que isso for. Mas isto da jurisprudência, como é de bom de ver, tem de tudo. Em 1999, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que "apalpar as nádegas de outrem, que se encontra num café entretido a jogar matraquilhos, poderá ser um ato subsumível ao crime de injúria, quando praticado com o propósito de ofender a honra e consideração".
Voltando à flatulência, os resultados de uma profunda investigação revelam que estamos perante um dos sérios problemas da população prisional. Sim. É verdade. Custa a acreditar, mas os documentos não enganam. No processo disciplinar 37/I/GJ/2011 no Estabelecimento Prisional de Monsanto, o recluso Marcus Fernandes, a cumprir pena pelo homicídio de dois agentes da PSP, foi alvo de sanção disciplinar porque "antes de ser encaminhado para uma visita especial com o seu pai teve um comportamento menos próprio ao dar um peido no momento em que o guarda L.C. estava a fazer a verificação aos membros inferiores". Isto da verificação dos membros inferiores daria outra análise crítica...
A Direção-Geral dos Serviços Prisionais investigou o caso a sério, recolhendo prova testemunhal: "O guarda D.H.", lê-se no documento, "não ouviu, mas detetou o cheiro e viu o recluso a virar a cara para o guarda L.C., fazendo uma expressão de gozo ao sorrir". Caso encerrado. Pena: proibição de utilização do fundo de maneio dos presos por 12 dias. Porém, não lhe cortaram o acesso a bebidas gaseificadas.
Só para o leitor perceber que esta página não é feita "às três pancadas", ao abrigo da Cooperação Judiciária dos Países de Língua Portuguesa, recolheu-se jurisprudência na 4.ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2.ª Região de São Paulo. Neste processo de 2007 estava em causa o despedimento de uma funcionária por flatulência no local de trabalho. Uma coisa desagradável para a entidade empregadora.
Porém, os juízes não tiveram o mesmo entendimento, considerando, por um lado, ser "impossível validar a aplicação de punição por flatulência no local de trabalho uma vez que se trata de reação orgânica natural à ingestão de alimentos e ar, os quais, combinados com outros elementos presentes no corpo humano, resultam em gases que se acumulam no tubo digestivo, que o organismo necessita de expelir, via oral ou anal". E que, portanto, "dar um peido" no local de trabalho pode "gerar constrangimentos e, até mesmo, piadas e brincadeiras", mas daí ao despedimento vai uma grande distância. Percebeste, Salvador?