Salazar, Vassalo e Silva, Costa Gomes e Mariupol
Mesmo que o filósofo Hegel tenha dito que "a história repete-se sempre, pelo menos duas vezes", e Karl Marx acrescentado "a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa", não posso estar de acordo com eles em relação aos factos históricos, porque um facto histórico é único e irrepetível, por ser demasiado complexo, e impossível de ser reconstituído em todas as suas vertentes e respectivas interligações.
Contudo, é de elementar bom senso reconhecer que, quando se pretende tomar certas decisões, os conhecedores dos acontecimentos históricos têm compreensíveis vantagens sobre as pessoas comuns, porque quem aprende com o passado pode eximir-se de cometer os mesmos erros no presente.
Este arrazoado vem a propósito da decisão que, na década de cinquenta e sessenta, Portugal teve de tomar em relação a Goa, principalmente na fase derradeira do período colonial, e também porque podemos aprender muito com os três protagonistas de então, importantes representantes do Estado Português, nomeados no título deste artigo, ao correlacioná-los com a presente situação de Mariupol.
Como já foi dito e repetido, vezes sem conta, para Salazar, Goa fazia parte integrante de Portugal, uno e indivisível, que ia do Minho a Timor. Em contrapartida, para Nehru, independentemente das razões históricas, Goa pertencia à União Indiana e isso era tão evidente que só não via quem fosse cego ou não quisesse ver. Para ele, era desnecessário apresentar provas, bastava olhar para o mapa físico da Índia para se retirar a ilação, demasiado óbvia.
Na perspectiva dos governantes portugueses, abrir negociações, com vista a discutir o "Caso de Goa", era escancarar as portas para a perda de todo o império colonial, que tanto custara a ganhar.
Daí que o Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, como intérprete máximo dos destinos da Nação e garante da coesão e integridade territorial, tenha dado ordens expressas ao general Manuel Vassalo e Silva, Governador-geral do Estado Português da Índia, para defender o território a todo o custo, sem jamais se render, porque ele não previa a possibilidade de tréguas nem a existência de prisioneiros portugueses ou de navios rendidos, sentia apenas que poderia haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos.
Perante a decisão inflexível e inabalável de Salazar, o Governador-geral, lutava com graves problemas de consciência, embora reconhecesse que tinha a obrigação de cumprir as ordens recebidas, também sabia que, se as obedecesse, seria responsabilizado pela destruição de Goa e morte de civis inocentes.
A viver essa situação dramática, Vassalo e Silvadizia, em confidência, que, como não era senhor absoluto da vida dos seus homens e da sua, se não conseguisse descobrir nenhuma possibilidade de sucesso em combate, só lhe restava aceitar a derrota e rendição, após uma resistência simbólica mas honrosa.
Contudo, a história veio a provar que era desnecessário chegar a este ponto de ruptura, como de facto aconteceu, porque bastava levar a sério o parecer dado, em Dezembro de 1960, por tenente-coronel Francisco da Costa Gomes, então subsecretário de Estado do Exército, após sua viagem de inspecção a Goa: "os efectivos que existem no Estado Português da Índia são demasiados para enfrentar acções terroristas mas, qualquer que seja o seu número, serão sempre escassos para enfrentar uma invasão da União Indiana".
Tal como em Goa, também em Mariupol, mesmo que os efectivos de defesa sejam reforçados, irão ser sempre escassos quando comparados com as forças russas, daí restarem-lhes três opções: serem vitoriosos ou mortos, como queria Salazar; a rendição, após resistência simbólica mas honrosa, como fez Vassalo e Silva; ou seguir o prudente caminho de diálogo, diplomacia e negociação, indicado, implicitamente, por Costa Gomes.
Entretanto, enquanto esta resolução não chega, em cada dia que passa, se por um lado, o número de vítimas e dos danos físicos e materiais vai aumentando incessantemente, por outro lado, a indústria de guerra bate palmas por ganhar milhões com a desgraça alheia; a indústria de construção civil esfrega as mãos e faz cálculos sobre os lucros que poderá alcançar com o restauro e a reconstrução de cidades inteiras; alguns meios de comunicação social e algumas redes sociais deliram com notícias frescas saídas de momento a momento, manipuladas sem vergonha e a bel-prazer; e o povo anónimo do mundo inteiro, em especial o europeu, vai pagando, retirando o dinheiro do seu bolso, o preço da incompetência dos governantes mundiais, que não souberam evitar o desencadear da tragédia da guerra e agora parecem estar mais preocupados em angariar ainda mais fundos para alimentá-la, em vez de lutarem em busca da paz e da cessação definitiva do conflito.
Todavia, não podemos esquecer que os sacrifícios do povo anónimo do mundo inteiro, designadamente, dos mais carenciados, por mais custosos que sejam de suportar, serão sempre ínfimos quando comparados com a perda de vidas humanas de ucranianos e russos.
Valentino Viegas, historiador