"Salazar não queria solução política para as colónias"

Com este <em>Orgulhosamente Sós</em>, o embaixador Bernardo Futscher Pereira conclui uma trilogia sobre a história diplomática do Estado Novo, após publicar <em>A Diplomacia de Salazar</em>, referente a 1932-1949, e <em>Crepúsculo do Colonialismo</em>, sobre a época 1949-1961. Fica evidente que a regra do regime após 1961, mesmo com Caetano, é a recusa total de pactuar o fim do Império.
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No seu livro, fala de oportunidades perdidas por Portugal para resolver o problema das colónias. Em 1963, 1969 e 1972. Porquê estes momentos e o que é que poderia ter sido diferente em termos diplomáticos que influenciasse o desfecho da questão africana?
Acho que é preciso distinguir 1963 de 1969 e 1972. No livro, procuro mostrar que em 1963 havia condições objetivas favoráveis para um eventual processo político. Mas, na prática, esse processo era inviabilizado pela presença de Salazar no governo. Salazar não queria uma solução política para as colónias.

Não queria negociar as colónias, ponto final.
Exatamente. Não queria. Mas essas condições favoráveis existiam na medida em que os Estados Unidos tinham desistido de derrubar o governo português, o primeiro ímpeto da ofensiva em Angola tinha-se esgotado, na Guiné a guerra tinha acabado de começar , ainda não se iniciara em Moçambique, e houve todo um esforço diplomático da administração americana, com a missão de George Ball, e depois uma parte menos conhecida, uma espécie de novidade que trago neste livro, que foram as negociações com os países africanos em Nova Iorque, conduzidas por Franco Nogueira sob a égide do secretário-geral das Nações Unidas. Portanto, havia ali um conjunto de circunstâncias relativamente favorável para procurar uma evolução diferente da que foi seguida. Só que Salazar não queria. E, portanto, é uma hipótese mais teórica do que real.

Em 1963 Salazar estava no poder, mas em 1969 e 1972 já não há Salazar para objetar e no entanto...
Em 1969 e em 1972 o que se poderia esperar era que Marcelo Caetano tivesse a perceção de que era preciso mudar de rumo e aproveitasse a boa vontade com que foi recebida a sua nomeação para encetar um processo político, seja lá em que termos fosse. Para procurar quebrar o impasse em torno da guerra colonial, que era já notório. Isto em 1969, quando ele chegou ao poder. Havia essa expectativa da parte de muitos países.

E em 1972?
Não o fez em 1969 e em 1972 as circunstâncias já eram bastante mais difíceis. Mas podia ter aberto um caminho de evolução se tivesse colocado o general Spínola na presidência em vez de reconduzir Américo Tomás. Isso poderia ter criado uma oportunidade para negociar o fim da guerra na Guiné.

O livro Portugal e o Futuro não tinha sido publicado ainda, mas conhecia-se o pensamento de Spínola sobre uma espécie de comunidade de língua portuguesa.
Exatamente. Conhecia-se já o pensamento de Spínola. Aliás, já se conhecia desde 1968, 1969, quando ele foi para a Guiné. Nas três frentes, a situação estava ainda relativamente controlada do ponto de vista militar. Em Angola, Portugal estava na mó de cima sob o comando do general Costa Gomes. Em Moçambique ainda não tinha havido o descalabro que depois ocorreu. Na Guiné idem aspas. Agora, elevar o general Spínola à presidência da República significaria, porventura, o fim de Marcelo Caetano. Seria uma passagem de poderes, de alguma forma. Nesse aspeto poderia ser, para Marcelo Caetano, uma espécie de suicídio político. Mas poderia ter aberto uma via de evolução diferente da que acabou por ocorrer.

Em todo este processo da guerra em África, a relação com os EUA é decisiva? Há aqui três presidentes. John Kennedy, que numa primeira fase é muito a favor das independências africanas, Lyndon Jonhson e depois Richard Nixon que, de certa forma , é mais complacente com Portugal. Portugal usa a Base das Lajes para negociar a posição americana em relação às colónias ou decisivo mesmo é a personalidade, a ideologia, de cada presidente americano?
Acho que a questão decisiva foi no tempo de Kennedy. Porque Lyndon Johnson não se interessava. Estava absorvido pela guerra do Vietname e pelo processo político interno dos EUA. Nixon era republicano, pragmático e queria um entendimento com Portugal, mas também não era assunto que o apaixonasse ou que se impusesse como uma prioridade. Realmente decisivo foi o choque frontal com a administração Kennedy em 1961 que culminou com o pronunciamento de Botelho Moniz e o seu falhanço.

Que é um golpe patrocinado pelos Estados Unidos?
Eu não diria patrocinado, mas talvez apadrinhado. Ou, digamos, com a cumplicidade dos Estados Unidos. A partir do momento em que isso não resulta, a administração Kennedy fica com menos armas para pressionar Portugal. E, ao mesmo tempo, a situação internacional, a crise do muro de Berlim, depois a crise dos mísseis em Cuba, toda a subida de tensão entre os dois blocos que houve nesses anos leva a uma mudança de posição da administração Kennedy. A facção dos chamados africanistas, que eram políticos nomeados para altos cargos do departamento de Estado que estavam apostados em confrontar Portugal, tem de ceder perante uma burocracia mais instalada, militar, e também parte do departamento do Estado, que privilegiava boas relações com os países da NATO e queria manter o acesso à base das Lajes. Com menos opções para pressionar Salazar, e num contexto internacional cada vez mais tenso, a facção atlantista foi ganhando terreno.

Ou seja, os EUA deixaram de hostilizar a política africana de Portugal mas nunca chegaram a apoiar?
Deixaram de hostilizar e passaram a acomodar-se, embora sempre procurando manter o embargo de armas, procurando levar Portugal para uma negociação.

Como se explica que num determinado momento, na Europa, sejam a França e a Alemanha os nossos grandes apoiantes e não o Reino Unido, o velho aliado?
Quando ocorre esta viragem nas relações com a França e com a Alemanha, no princípio dos anos 1960, de Gaulle está no poder em França e quer conduzir uma política autónoma em relação aos EUA e ao Reino Unido, que por sua vez está cada vez mais enfeudado a Washington. Com o Reino Unido tudo se complica também por causa da crise da Rodésia. Tanto franceses como alemães querem ter facilidades militares no território português e é nessa negociação que se constrói o apoio que depois darão - essencialmente vendas de armamento - à guerra colonial.

Para a nossa diplomacia foi complicado explicar que um país que dizia ser pluricontinental e não racista ter procurado alianças com a Rodésia e com a África do Sul?
Sim, e houve sempre a preocupação de manter essas relações dentro do maior segredo possível. Agora, no livro, falo disso abertamente e explico todos os passos que levaram até ao exercício Alcora, que representou a formalização da aliança militar com a Rodésia e a África do Sul. O primeiro passo, e decisivo, foi termos instigado a independência unilateral da Rodésia, como demonstro neste livro. Mas durante anos foi segredo de Estado.

Ou seja, não havia contradição porque, supostamente, não era sequer conhecido?
Toda a gente suspeitava, mas era assunto de que se falava o menos possível. O que acontece é que a lógica da guerra acaba por impor a necessidade dessas alianças.

E aquela aproximação com alguns países africanos tentando afastá-los da posição da OUA?
Sim, nós procurámos pesar sobre as opções dos países africanos limítrofes das colónias portuguesas.

Nomeadamente dos que eram encravados e precisavam de acesso ao mar via Angola ou Moçambique.
Exatamente. Essa é uma história que eu conto em bastante detalhe, mas é muito variada. Porque estamos a falar de vários países muito diferentes: no caso da Guiné, o Senegal e a Guiné-Conacri, que têm posições antagónicas. Em Angola, o antigo Congo belga, depois Zaire, o Congo Brazzaville, e depois a Zâmbia. Em Moçambique, o Malawi, a Zâmbia e a Tanzânia. E a Rodésia e a África do Sul, obviamente. Portanto, são muitos países e reagem de forma diferente. Realmente a maior arma que temos é o acesso ao mar para os países que estão encravados. É o caso da Zâmbia e do Malawi, e também da Rodésia. Com o Malawi consegue-se recrutá-lo para o nosso campo, com a Zâmbia não. Mas nunca se deixa de tentar. Há sempre tentativas para trazer a Zâmbia à fala e encontrar um entendimento com Portugal e há muitos contactos ao longo dos anos.

Esse esforço é feito pelos diplomatas? É a diplomacia? Não são os comandantes militares nos países?
No Malawi, em primeiro lugar, é o Jorge Jardim. Na Zâmbia sim, é a diplomacia. A diplomacia e o Ministério do Ultramar, também. Depois no Zaire a mesma coisa. Em todos esses países, sim. É a diplomacia, depois, com o decorrer da guerra começa a haver outros intervenientes. A PIDE, no caso do Zaire, alguns elementos mais destacados da comunidade portuguesa. Mas são processos comandados por Lisboa, essencialmente pelo ministério dos Negócios Estrangeiros. Neste campo, é o Ministério dos Negócios Estrangeiros que governa, em sintonia com Salazar obviamente. Depois, numa fase final da guerra as coisas complicam-se.

E sobre a questão do Vaticano. Há a visita de Paulo VI à Índia, pouco tempo depois da invasão de Goa. Há também o Papa a receber os líderes dos movimentos africanos de libertação. Do ponto de vista da diplomacia, e também no impacto interno, é, claramente, uma derrota para o regime, não?
Claramente. E tem uma importância decisiva no ruir do regime. Porque há dois pilares de apoio ao Estado Novo, as Forças Armadas e a Igreja. No caso das Forças Armadas é um processo bem conhecido, pois através da guerra o apoio acaba por desaparecer. No caso das dissensões com o Vaticano , que começam com o Papa João XXIII, no início dos anos 60, cria-se uma brecha no mundo católico em Portugal, que depois não cessa de se aprofundar em torno de vários episódios. Há a visita à Índia de Paulo VI, mais tarde, a audiência que ele concede aos líderes dos movimentos de libertação. Os problemas enormes com a igreja em Moçambique. Tudo isso cavou divisões no mundo católico em Portugal, fazendo emergir uma tendência, a dos católicos progressistas, que depois fazem a ponte entre as elites tradicionais, que apoiavam o Estado Novo, e a oposição.

Falando nos ministros dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira e Rui Patrício, duas figuras completamente diferentes. É possível dizer que um trabalhando com Salazar e o outro já com Marcelo Caetano, apesar de tudo houve uma coerência na política externa portuguesa?
Houve coerência na medida em que as posições básicas não se alteraram. Continuámos a defender, até ao fim, o direito de continuarmos a guerra e mantermos as potências ultramarinas. Nesse aspeto houve continuidade. Mas também houve diferenças na maneira de atuar e de proceder. Diferenças de substância e diferenças de estilo.

Mas foi mais difícil a tarefa para o próprio Patrício do que para Franco Nogueira?
Rui Patrício já apanha o comboio numa fase tardia, em que tem de lidar com muito mais interferências de outros centros de poder na condução da política externa. As Forças Armadas, a PIDE, etc. Ele próprio também não tinha tanto peso como Franco Nogueira. Franco Nogueira tinha muita autoridade, estava muito próximo do Salazar, que se fiava muito nele. Apesar de tudo acho que também houve uma evolução na posição de Franco Nogueira. Procuro demonstrar isso no livro. Franco Nogueira quando foi nomeado ministro não estava ainda tão alinhado com as posições de Salazar como depois quis deixar transparecer no que escreveu. Mas, na altura, Franco Nogueira tinha mais autoridade e menos interferências... e a guerra também estava numa fase ainda incipiente. Porque depois todas as relações com esses países dos quais nos tentámos aproximar, designadamente o Malawi, a Zâmbia e o Senegal, foram extraordinariamente complicadas pelas incursões transfronteiriças do exército. As incursões das Forças Armadas portuguesas nos territórios desses países, em hot pursuit ou para tentar combater a implantação dos movimentos de libertação, tornaram-se um fator constante de perturbação.

Houve alguma tentativa da nossa diplomacia em influenciar a China ou a URSS? Ou isso estava fora do alcance?
Há em vários momentos uma tentação de procurar um entendimento com a China. Eu acho que Franco Nogueira, que era casado com uma senhora chinesa, sempre vê isso como uma hipótese, que nunca acaba por se concretizar. Penso que por razões ideológicas, pois, apesar da sua animosidade contra os americanos, Salazar não os quer provocar.

Com a URSS não há hipótese?
Com a União Soviética, não. Não há hipótese. Ainda há umas compras de material militar feitas pelo Jorge Jardim, mas não há verdadeiras tentativas nesse sentido.

Indo aos seus livros anteriores, com este terceiro agora, no fundo, faz uma história da diplomacia no Estado Novo. Na Segunda Guerra Mundial, apesar de todas as tentativas de equilíbrio entre beligerantes, Salazar está no campo ocidental e não está no campo fascista. E isso depois vai ter um prémio, estar na fundação da NATO. Pode-se entender assim?
Durante esse período, do primeiro livro, até à formação da NATO, com a Guerra Civil de Espanha e sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial, há uma tensão constante no pensamento de Salazar entre, digamos, as suas predileções ideológicas e aquilo que podemos designar por razão de Estado. Nessa altura a aliança com a Inglaterra era um facto. A Inglaterra tinha uma posição dominante na economia portuguesa e era uma grande potência. A aliança nunca é posta em causa e isso os ingleses reconhecem-no. Nessa medida, pode dizer-se que Salazar optou, de alguma forma, pelo mundo ocidental. Mas, até 1943, quando há o acordo para os ingleses se instalarem nos Açores, a política era de neutralidade e as simpatias do Salazar não estavam inteiramente com a política inglesa. Porque, para Salazar, o grande perigo era a União Soviética. Nos anos 1930, Salazar era fundamentalmente um apaziguador, identificava-se com a linha política de Chamberlain. O perigo vem da União Soviética. Vamos tentar arranjar aqui um acordo com os alemães, mas não porque ele tivesse simpatia com o nazismo, que não tinha, mas porque achava, como uma vez disse, que a Alemanha era o fronteiro da Europa.

O comunismo era a grande ameaça aos olhos de Salazar?
O comunismo era a grande ameaça. E, portanto, há sempre essa tensão. Mas acaba por optar pelos ocidentais com o acordo que faz em 1943. Fica no campo ocidental e, de facto, a recompensa é a integração de Portugal na NATO.

Porque, por exemplo, a Espanha é fortemente anticomunista e não está na formação da NATO.
Nós temos um trunfo que interessa muito aos americanos, que são os Açores. Interessa ter os Açores na NATO, por um lado. Por outro lado, não há tanta animosidade contra Portugal e contra Salazar, como contra os espanhóis e contra Franco que é visto como tendo basicamente alinhado com as potências do Eixo, embora tivesse mantido a neutralidade, mas ideologicamente alinhado com o Eixo.

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