Sal: uma indústria que conserva os trabalhadores e dá tempero ao país

Nas salinas do Samouco, às portas de Lisboa, já se está a fazer a extração do sal. Esta atividade artesanal tem por objetivo mostrar a arte dos salineiros e preservar o ecossistema do estuário do Tejo. Ainda assim, espera-se uma produção de 200 toneladas de sal e cinco de flor de sal
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"Se sal conserva, o senhor Agostinho está cá para o provar." O trocadilho do vereador da Câmara de Alcochete e por inerência membro do conselho de administração da Fundação das Salinas do Samouco, Jorge Giro, justifica a energia do senhor Agostinho que aos 85 anos continua a ajudar na recolha do sal, como voluntário. Nestes campos à beira Tejo e junto à Ponte Vasco da Gama, há 60 anos, Agostinho era preso pela PIDE na sequência de uma greve onde "pedíamos mais um escudo de ordenado e menos horas de trabalho", explica o salineiro voluntário.

Agostinho vem ajudar João Marques, que gosta mais de ser chamado João Matias, o nome pelo qual é conhecido em Alcochete. João é o responsável pela extração das "cento e poucas toneladas de sal" das salinas da Fundação para Proteção e Gestão Ambiental das Salinas do Samouco. E esta é uma época em que o trabalho é mais intenso. Na manhã de dia 10, quinta-feira, João está a "fazer a rapação" do sal na marinha, para secar e ser recolhido. "Temos trabalho o ano inteiro", começa por explicar, agora está na altura "de cristalizar no caldeirão e depois faz-se a extração", uma operação que se faz duas vezes por semana.

No entanto, também por estas bandas o vento frio e húmido está a dificultar a rentabilidade das salinas. "Neste ano está a levar mais tempo por causa do tempo, que está frio e húmido", o que também tem impedido uma extração mais volumosa da flor de sal - o ex-líbris da produção. "A flor de sal é uma nata que fica por cima, não assenta no tanque. É um cristal muito fino e que normalmente só se forma lá pelas 16.00 ou 17.00, e como as noites ficam frias não dá para tirar de manhã porque ainda está muito fino e parte-se todo", lamenta João Matias. Até agora foram recolhidas duas toneladas e o objetivo é que até ao final da época da extração de sal - que vai durar até surgirem as primeiras chuvas - se atinja a marca das cinco toneladas.

João Matias tem os pés dentro do tanque, entre a água de tom rosado e a camada de sal que já é bem visível. E conta todo o processo desde que a água do rio entra no primeiro viveiro e aí fica quatro ou cinco dias. Depois é dirigido para os evaporadores, onde a água não ultrapassa uma altura de 1,10 metros, depois passa para a reserva onde fica apenas uma lâmina de água de dez centímetros e vai evaporando. Nos viveiros, a água tem dois graus de solubilidade, o que significa 20 gramas de sal por cada litro de água. Na reserva ganha três a quatro graus. Só é extraído quando tem 250 gramas/litro. Aí é que começa a cristalizar e é rapado para os cantos dos cristalizadores, que segundo as normas da extração artesanal não ultrapassam os 60 metros quadrados. Quando chega ao último tanque é preciso voltar a irrigar os cristalizadores, mas fazer regressar a água de forma limpa e artesanal também foi outro desafio. "Comprámos uns painéis solares", explica Firmino Sá, presidente da Fundação para Proteção e Gestão Ambiental das Salinas do Samouco, que fornecem energia ao motor que faz girar uma roda de madeira inventada pelos árabes - estas salinas são exploradas pelo menos desde o século XIII - que já chegou a ser girada à força de homem, em turnos de duas horas.

O responsável pela extração no Samouco recorda que chegou àqueles terrenos - que fazem parte do estuário do Tejo - aos 11 anos, "como aguadeiro". Acabou a escola aos 16 e foi trabalhar para as salinas, onde o pai era o feitor. Ficou encarregado da exploração aos 23 anos, depois da reforma do pai, e num instante passaram 47 anos. E de uma época em que as pessoas trabalhavam "de empreitada", das 03.00 às 08.30 para tirar "sete molhos de sal, que eram cinco toneladas e meia, e corriam 140 metros com a canastra de 48 a 60 quilos à cabeça para despejar o sal na serra", passou para uma era mais moderna. Ainda que agora na salina do canto não existam meios mecânicos e tudo se faça segundo o processo artesanal - uma exigência da Comissão Europeia -, nada se compara aos primeiros tempos de João nas salinas.

"O trabalho de rapação também é pesado. Esta água é muito saturada e sem hidratantes a pele envelhecia muito rapidamente." Isto apesar de, ironicamente, o sal também servir para produtos cosméticos e esta ser uma das indústrias que compram o produto do Samouco.

Também Agostinho, que aqui trabalhou entre os 8 e os 26 anos e que regressou na reforma como voluntário, também recorda os tempos mais duros de outrora. "São tradições da nossa terra e agora venho ajudar sempre que posso."

João Matias viu as salinas que outrora produziam 60% do sal nacional transformarem-se numa reserva natural e o seu trabalho ser mais didático do que com objetivo de lucro. Porém, João não esconde o entusiasmo de passar o seu conhecimento às crianças das escolas que por aqui passam e outros visitantes - até ao final de julho já foram mais de 5200. "Grande parte da visitação vem pela produção do sal. Fazemos sempre um caldeirão para os miúdos verem e eles ficam sempre muito entusiasmados. Isso é bom", refere João Matias.

Se bem que a fundação está a tentar diversificar as fontes de financiamento. "Em 2018, vamos começar uma plantação de salicórnia. É uma planta conhecida como o sal verde, que os franceses chamam de espargos do mar, e que pode ser vendida como alternativa ao sal para hipertensos", explica o engenheiro Firmino Sá, presidente da Fundação para Proteção e Gestão Ambiental das Salinas do Samouco.

A pequena planta nasce junto aos tanques por onde passa a água até se extrair o sal. Uma prova improvisada junto a um dos tanques que ocupam os 360 hectares das salinas permite confirmar que a pequena erva é ligeiramente salgada, daí ser usada pelos chefs para temperar saladas e fazer outras receitas substituindo o sal e a salsa.

O objetivo é produzir também "de forma artesanal, sem danificar o ecossistema e sem impacto ambiental", assegura Firmino Sá. Até porque esta planta "regada com água salgada" já nasce naturalmente na zona.

O produto que aqui se faz é exportado na sua maioria (a Alemanha é o principal comprador) e vendido na loja do museu. A fundação procura diversificar os seus produtos e o seu modelo de negócio uma vez que "o decreto-lei só garante financiamento da Lusoponte até 2030", aponta o vereador dos Espaços Verdes, Jorge Giro.

A fundação foi criada em 2000, na sequência da construção da Ponte Vasco da Gama, com o objetivo de criar uma área protegida que promovesse e mantivesse as Salinas do Samouco. O conselho de fundadores tem representantes dos ministérios do Equipamento Social, do Ambiente e do Ordenamento do Território, da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas e da Ciência e da Tecnologia, da Lusoponte, do Oceanário de Lisboa e do Instituto da Conservação da Natureza.

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