Sai Peixes, entra Aquário
Todos os jornais deram. Às zero horas da segunda-feira última, começou a Era de Aquário, sucedendo à milenar e desprestigiada Era de Peixes. E eu, que esperava por este momento há 50 anos, estava prosaicamente dormindo quando aconteceu. Como posso ter me descuidado e perdido esse momento histórico? Imperdoável! Meu consolo é que não fui o único - ninguém no meu bairro, cidade e país soltou fogos, o que me teria feito acordar e ir à janela para comemorar. Mas nada - o Leblon, o Rio e o Brasil pareciam mergulhados em sono profundo. Peixes deu lugar a Aquário como se isso fosse banal, que acontecesse toda noite, e estamos conversados.
Mas não devia ser algo banal nem estarmos conversados. Assim que os ponteiros do relógio se encontraram no primeiro segundo de segunda-feira, a Lua entrou na cobiçada sétima casa do Zodíaco. Júpiter alinhou-se milimetricamente com Saturno e o universo experimentou uma silenciosa mas arrebatadora convulsão. Brrr! Bum! Bang! Tudo como previsto na letra de Aquarius, a canção de Gait McDermott, do musical da Broadway Hair, de 1967, que anunciou a chegada dos novos tempos - aqueles em que, segundo a letra de Gerome Ragni e James Rado, a paz passaria a guiar o planeta, a harmonia reinaria sobre a humanidade, viveríamos visões douradas e conheceríamos a verdadeira libertação da mente. É o que, segundo eles, nos promete a Era de Aquário. Pois, enquanto essas maravilhas estavam acontecendo lá em cima, no raiar de segunda-feira, eu estava miseravelmente a roncar. E, quando despertei, pelas nove ou dez da manhã, já tínhamos deixado para trás a Era de Peixes e ingressado na nova era.
Não que eu estivesse tão ansioso pela chegada de Aquarius. Ao contrário. Quem foi adulto nos idos de 1970 ainda se lembra de certas peculiaridades da época, protagonizadas por pessoas para as quais a Era de Aquário estava às portas e já precisávamos nos preparar para ela. Lembro-me, por exemplo, de que, ao chegar à casa de amigos, não éramos mais convidados a nos sentarmos. Os sofás e poltronas haviam desaparecido, substituídos por esteiras jogadas ao chão, adornadas com grandes almofadas. Era onde tínhamos de nos acomodar durante a visita, sendo que, dependendo do peso, era difícil a uma pessoa se levantar sem a ajuda de outra. Da mesma forma, as bebidas tradicionais que até então se ofereciam às visitas - uísque, vodca, gin tónico - foram trocadas por um cigarrinho que corria entre as pessoas na sala e, ao ser compartilhado por todos, já vinha desagradavelmente babado quando chegava até nós. E, talvez por seus efeitos sobre a mente, fazia que as pessoas que o tragavam se sentissem brilhantes, opinião que não era partilhada por quem tivesse recusado o dito cigarrinho.
As pessoas começaram a abandonar em massa seus empregos e famílias, a deixar as grandes cidades e a se aglomerar em pequenas comunidades rurais - hippies, como se chamavam -, para fugir da exploração capitalista que nos obrigava a comprar carros, roupas e objetos de que não precisávamos. Nessas comunidades, as pessoas podiam produzir seu próprio alimento, extraindo-o diretamente do solo. Com isso, passaram a ter uma alimentação mais saudável, já que não era possível plantar costeletas de porco e galinhas de cabidela. Embora a pílula anticoncecional tivesse acabado de ser inventada, estimulava-se a procriação intensiva, para que as novas gerações já crescessem sob o novo estilo de vida. Daí aquelas comunidades terem uma multidão de crianças com o nariz a escorrer. O problema é que, como as comunidades não usavam dinheiro, não havia como comprar papinhas e cereais para os miúdos, donde eles teriam de mamar no peito de suas mães até aos 30 anos.
Para sorte deles, esse estilo de vida não durou muito. Descobriu-se que não era possível abandonar de todo certas práticas da odiada civilização. Por exemplo: lavar os pratos. Já que as pessoas tinham de se alimentar, mesmo que em cuias e gamelas, estas precisavam ser lavadas de vez em quando.
E quem fazia isto? As mulheres das comunidades, já que os homens, apesar de sua avançada espiritualidade, continuavam a achar que lavar a louça era uma atribuição feminina. Outro problema foram as colónias de piolhos, que, por falta de certos cuidados, começaram a grassar na cabeça de todo o mundo e tinham de ser combatidas com alguma espécie de veneno. Foi preciso voltar atrás. Tudo isso era um aprendizado para a chegada da Era de Aquário, que, como eles sabiam, começaria no dia 21 de dezembro de 2020.
Confesso que eu via tudo isso com certo desgosto. Achava Hair, hippies e comida natural chatíssimos, e preferia uísque a maconha. Nunca fui de me deitar em esteiras. Sempre trabalhei duro e sem me queixar.
E jamais iria morar na roça, por ser apaixonado pelas cidades modernas, com prédios altos, gente nas ruas, táxis a noite inteira. Além disso, convenci-me desde cedo de que seria difícil superar a Era de Peixes. É só relacionar algumas coisas que esta produziu desde o seu começo, em 1 d.C.
Duvida? Para ficarmos só na literatura e, mesmo assim, anterior a 1900, veja o que saiu de Peixes. As 1001 Noites. Pantagruel. Os Lusíadas. Hamlet. Dom Quixote. Viagens de Gulliver. Os 120 Dias de Sodoma. Orgulho e Preconceito. Frankenstein. O Vermelho e o Negro. Oliver Twist. Eugénie Grandet. O Poço e o Pêndulo. Os Três Mosqueteiros. Jane Eyre. Memórias de Um Sargento de Milícias. Moby Dick. Madame Bovary. Os Miseráveis. Alice no País das Maravilhas. Crime e Castigo. Guerra e Paz. Os Maias. Memórias Póstumas de Brás Cubas. A Ilha do Tesouro. Germinal. Ela. O Retrato de Dorian Gray. As Aventuras de Sherlock Holmes. A Guerra dos Mundos. Etc. Etc. Etc.
Aquário, você tem até o ano 4180 para superar isto - se puder.
Jornalista e escritor brasileiro