Saem as trompas de Falópio, entram as tubas uterinas

Há 20 anos, os médicos mudaram os nomes de seis mil partes do corpo humano. Com isso, nunca mais tivemos dor de ouvido, só de orelhas.
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Foi há uns 20 anos. Um dia, médicos de 16 países reuniram-se em São Paulo e anunciaram que, depois de muitos estudos, seis mil partes do corpo humano tinham sido rebatizadas com novos nomes oficiais. Com isso, nunca mais tivemos dor de ouvido. Só dor de orelhas.

Eles descobriram que, por vários motivos, muitos nomes antigos já não serviam. E foram bem claros: só os nomes estavam mudando, mas as funções continuavam as mesmas. Ah, bom! A velha orelha, portanto, continuava a ser orelha, própria para levar um puxão ou carregar um brinco - mas teria de ser chamada de orelha externa. E o ouvido, subitamente evaporado dos dicionários médicos, passava a ser a orelha interna.

Outro que desapareceu nessa revolução da nomenclatura foi o cotovelo, rebatizado como cúbito. Só que, em alguns casos, os cientistas tiveram de fazer um ajuste, e este foi um deles - porque já havia no braço um osso chamado cúbito. Pois deixou de chamar-se. O antigo cúbito passou a chamar-se ulna, a fim de libertar espaço para o novo cúbito, que aposentou o cotovelo. E lembra-se do perónio, aquele osso que os jogadores de futebol costumavam fraturar junto com a tíbia? Passou a chamar-se fíbula. Donde, desde então, tivemos exclusivamente fraturas da fíbula e da tíbia. Quanto ao bravo aparelho digestivo - aquele que você sempre obrigou a processar os mais pesados torpedos -, também mudou de nome. Tornou-se o sistema digestório, que, para mim, soa como nome de purgante. Enfim, ao ler tudo isto você perguntará: "Mas que loucura foi essa? O que os nomes antigos tinham de errado?" A resposta é obvia. Por trás de tudo isto, lá estava, solerte, o nosso velho conhecido: o "politicamente correto".

Vejamos o pomo-de-adão. Descobriu-se que, como as mulheres (as feias, principalmente) também têm aquela horrenda proeminência no gogó, era injusto homenagear apenas o Adão, esquecendo-se a querida Eva. Donde não se admitia que essa importante parte da anatomia fosse atribuída somente a um homem. Ao mesmo tempo seria preconceituoso inventar o pomo-de-eva e, de qualquer maneira, o nome não se aplicaria a um gogó masculino. Daí que, a partir de então, o poético pomo-de-adão passou a ser chamado, prosaicamente, de proeminência laríngea.

Pelo mesmo motivo, os cientistas aproveitaram para cassar também os nomes de outros heróis que há séculos vinham batizando certas partes do corpo. De um dia para o outro, eles não serviam mais, apenas porque só se referiam a homens. Com isso, o tendão de Aquiles passou a ser o tendão calcâneo. A trompa de Eustáquio tornou-se a tuba auditiva. E não ria, mas as trompas de Falópio passaram a ser as tubas uterinas.

Não vamos nem discutir o desrespeito a Aquiles, o grande guerreiro da mitologia e um dos símbolos universais da coragem e da valentia. Mas, o que dizer do insulto a Eustáquio e Falópio, os médicos italianos do século XVI que foram os primeiros a descrever as trompas que ganharam os seus nomes? Eustáquio e Falópio não dispunham de computadores, microcâmaras ou aparelhos de ultrassom para espiar dentro do corpo humano. Tudo o que descobriram foi à custa de cirurgias complicadas numa época em que não existiam anestesia ou luz elétrica. E o que fizeram os seus atuais sucessores, cercados de modernas facilidades? Cassaram-lhe os nomes.

Os médicos justificam-se dizendo que os nomes eram imprecisos e que aquelas partes, digamos, do ouvido e do útero estavam de facto mais para tubas do que para trompas. Será? Pois, mesmo que se parecessem com trombones ou fagotes, os seus nomes originais deveriam ser preservados, até porque a sua função no corpo humano nunca foi a de produzir música. E que mulher ficará mais contente ao saber que, no lugar das líricas trompas de Falópio, passou a carregar em suas entranhas um par de tubas uterinas?

Eu acharia mais justo se, no embalo, os médicos também tivessem mudado o nome de algumas das suas especialidades. Os otorrinolaringologistas, por exemplo, cuja designação se presta tanto a piadas, poderiam ter sido convidados a se chamar por um nome que destroncasse menos a língua e criasse menos calos nos ouvidos dos seus clientes.

Por enquanto, só posso ser grato aos cientistas por terem conservado intactos alguns nomes e expressões que me encantam, embora nem sempre eu saiba o que significam. Alguns: glote, piloro, úvula, cóccix, geno valgo, zarolho, orelhas de abano e movimentos peristálticos.

Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, Carnaval no Fogo - Uma Cidade Excitante demais, sobre o Rio (Tinta da China).

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