Sabem onde podem meter as flores?

Em Espanha, a primeira greve geral feminista no mundo parou mais de cinco milhões de pessoas; em Portugal, não fez uma capa de jornal. Cá é mais flores.
Publicado a
Atualizado a

Esta semana, uma mulher que trabalha na câmara de Lisboa contou-me que o respetivo departamento de recursos humanos andou a distribuir flores às funcionárias e que o vereador comunista João Ferreira foi de secretária em secretária entregar um cravo encarnado a cada uma. Entretanto, a mesma CML difundia um vídeo sobre a percentagem de mulheres que trabalha na autarquia (mais de 70%) e de quadros dirigentes (43%), terminando com a imagem de uma rosa encarnada. A associação das mulheres a flores - objetos bonitos, doces e frágeis cuja valia é enfeitar jarras ou lapelas e perfumar o ambiente - e a noção de que "o dia da mulher" é uma espécie de São Valentim no qual se celebra uma ideia do "feminino", seja lá isso o que for (tanta autarquia que na data oferece "cursos de maquilhagem" e estultícias quejandas a mulheres) é a imagem adequada à ausência de seriedade e reflexão com que a ideia da luta pela igualdade é encarada pela maioria e, como sublinhou Daniel Oliveira no Expresso, da forma como a data é apropriada pelo mercado.

Essa ausência de interesse, até de desprezo, pelo que o feminismo significa, mesmo após um ano como o de 2017, marcado pela fúria (sim, fúria, aleluia; sem fúria nunca se mudou nada) dos movimentos de mulheres contra a discriminação e o sexismo, chega ao ponto de, nas capas dos jornais de 9 de março - incluindo este onde escrevo - nem uma linha se ter reservado para os extraordinários acontecimentos do dia anterior em Espanha. É como se manifestações de dezenas de milhares de mulheres em 120 cidades, associadas a uma greve nacional de protesto contra o sexismo e a discriminação à qual se estima terem aderido mais de cinco milhões de pessoas (não só mulheres), incluindo, de acordo com as notícias, a própria rainha - esta teria cancelado todas as atividades marcadas para o dia - não fosse algo de inédito no mundo; como se o país onde tal ocorreu não fosse aqui ao lado.

Não sei o que levou as direções dos jornais portugueses a assim desprezar algo desta importância - mas só há uma explicação, que é a de não lhe terem, precisamente, conferido importância. Imagens de redações espanholas quase vazias, com os ecrãs dos computadores nas secretárias das jornalistas ausentes ostentando 8M, programas de TV cancelados porque as pivôs aderiram à greve, não terão feito soar qualquer campainha nas nossas redações, onde as mulheres há muito estão em maioria. O "sem nós o mundo pára", mote da paralisação que uniu a dividida Espanha numa luta nacional, não chegou aos ouvidos portugueses.

Esta indiferença é tanto mais interessante quando estamos sempre a ouvir e ler que "as feministas não se concentram no que é realmente importante" e não passam de uma minoria de "histéricas" e "exageradas", que "o feminismo já não faz sentido porque os direitos já são iguais" ou que "o verdadeiro feminismo é outra coisa" (sendo que o que essa coisa é fica sempre por dizer). Ora num país de quase 47 milhões, dos quais quase 24 são mulheres e numa população ativa estimada em 23, a adesão reportada à greve feminista significa que quase um terço daquela parou. Não foram todas as mulheres de Espanha? Não. Mas de quantas greves se lembram nos últimos anos, no mundo, com esta expressão? E quantas greves nacionais houve com o estatuto da mulher como motivo?

Eu ajudo: nenhuma. Mas a indiferença e o desprezo em relação a esta manifestação de força do movimento feminista não se resume aos media - se em Espanha 10 sindicatos aderiram a esta greve, em Portugal nenhuma das duas centrais viu nela merecimento. Nos partidos, só o BE apoiou a iniciativa; já o PCP, pela voz de Regina Marques, presidente do seu movimento de mulheres (MDM), apelidou a greve espanhola de "show-off muito grande", afirmando: "Elas têm a suas razões para fazer isso, mas nós, em Portugal, não [temos] razões ainda para fazer isso. E porquê? Só metade das mulheres é que são trabalhadoras e têm de fazer greve por razões laborais e não por outras questões". Definindo a greve como uma luta contra patrões ("A greve é algo que está instituído para quem trabalha. Uma mulher que não trabalha, não faz greve. Quem é o patrão que se vai sentir incomodado com essa greve?") e assim fazendo de conta que o seu partido não é useiro e vezeiro em apoiar/convocar greves gerais contra governos e políticas e portanto de "protesto genérico", Regina Marques parece além do mais (e o mais é tanto) ignorar que entre os motivos da convocatória espanhola estava a diferença salarial em relação aos homens e o assédio sexual em meio laboral - as tais razões laborais que não vislumbra. Mas, não contente com tanto dislate, ainda referiu desaprovadoramente uma tal de "greve ao sexo". Não faço ideia do que fala a líder do MDM mas anoto a sua determinação em descredibilizar a maior e mais importante manifestação feminista desde século, e talvez de sempre, na Europa. Suponho que para ela e para o PCP o que é revolucionário e defende os direitos das mulheres é homens a oferecer flores no 8M, como fez o seu camarada João Ferreira. A muito cavalheirescamente lembrar, como escreveu Daniel Oliveira, os 17 cêntimos por euro que em Portugal eles ganham a mais que nós.

Correção: Ao contrário do que afirmei neste texto, houve pelo menos uma greve nacional com o estatuto da mulher como motivo antes da que ocorreu na passada quinta-feira em Espanha: na Islândia, em 24 de outubro de 1975. A greve paralisou o país e houve várias manifestações, uma delas, na capital, com cerca de 25 mil mulheres -- mais de 10% da população num país que à época contava 220 mil habitantes. (Nota publicada às 2.26 horas de 12 de março)

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt