Rússia. Nathalie, a guia do Hotel Ukraina

Mala de viagem (153). Um retrato muito pessoal da Rússia.
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De Lisboa a Pequim, foi a grande viagem transiberiana, que passou por diferentes países e capitais. A partida para fora do país aconteceu em Lisboa, no comboio noturno "Sud Express" e seguiu até Hendaye, em França, numa viagem de 13 horas. Desta cidade até à capital parisiense, a viagem foi em alta velocidade, com recurso ao TGV. Chegado a Paris-Montparnasse, segui até Moscovo. A viagem ferroviária entre Paris e Moscovo realizava-se uma vez por semana, à noite, num total de 40 horas. Aqui pernoitei num confortável comboio russo. Antes de partir rumo a Pequim, num outro comboio noturno direto, excelente foi a oportunidade para visitar a cidade, durante uma noite e em partes de dois dias intensos. Cheguei a Moscovo pela tarde e fui transportado para um hotel mais em conta do que aquele que é o centro desta história. Estavam previstos um jantar de grupo e visitas coletivas nessa noite e no dia seguinte. No roteiro da viagem de grupo, não podia faltar o passeio pela vasta Praça Vermelha, pelas esplêndidas e artísticas estações do metropolitano e pela majestosa fortaleza do Kremlin, "fortaleza dentro de uma cidade", precisamente a tradução em português, mas sendo também uma metonímia para se referir ao Governo da Federação Russa. Encontrei as rendas e os panos bordados, mas não o famoso "khalvá", doce feito com sementes de girassol ou sésamo torradas a que se junta açúcar ou mel, a que Walter Benjamin se referiu nos seus "Diários de Viagem", quando, em 1926, esteve em Moscovo. Quase um século depois, a minha história passa-se na visita ao Hotel Ukraina, que fica na margem ocidental do rio Moscovo, num dos famosos arranha-céus dos tempos de Estaline, construído para demonstrar a proeza e a glória do regime soviético. A primeira pedra foi colocada em 1947 para marcar o 800.º aniversário de Moscovo e celebrar a vitória da União Soviética na Segunda Guerra Mundial. Embora concluído após a morte do governante, os sete arranha-céus estão relacionados com a pretensão de Estaline, sete "pontos de exclamação" que pontuam o horizonte de Moscovo. A inauguração do hotel ocorreu a 25 de maio de 1957, precisamente dois meses depois (25 de março) da assinatura por seis países, em Roma, do Tratado que daria origem à Comunidade Económica Europeia (atual União Europeia). A imprensa soviética cobriu amplamente a inauguração, talvez como uma resposta ao Tratado. Este hotel passou a ser o mais alto do mundo na data da sua construção que, pelo facto de estar nas margens baixas do rio, obrigou os responsáveis pela obra a aprofundar as fundações muito abaixo do nível da água, o que só foi possível por meio de um engenhoso sistema de retenção e bombeamentos. Nesta visita, 60 anos depois da inauguração, o hotel já tinha sido adquirido por novos proprietários e recebido uma renovação profunda, com cinco restaurantes, um centro de conferências, um andar executivo, sala de banquetes, biblioteca, "spas", piscina de 50 metros, frota de iates com saída para o rio e 505 quartos e 38 apartamentos. Reabriu em 28 de abril de 2010, sendo atualmente Radisson Collection Hotel Moscow, pertencente à nova geração de peças icónicas e de espaços únicos deste grupo hoteleiro. Porém, muitos ainda lhe chamam Ukraina, mesmo agora em que escrevo estas memórias e em que os dois países, Rússia e Ucrânia, estão em guerra. Na visita, a guia disse-me que o investidor da remodelação do hotel é um milionário altruísta, a tal ponto que, dentre os galardões e prémios que recebeu e eu investiguei posteriormente, se destaca, pelo nome, o prémio "O Violinista no Telhado", em 2015, conferido pela Federação das Comunidades Judaicas da Rússia. Que estranho nome para um prémio! E será que este país passou a ser como um violino, pega-se com a esquerda e toca-se com a direita? E haverá nele telhados de vidro? Estávamos ali, eu e Nathalie, a guia que curiosamente tinha o mesmo nome da guia turística russa da canção homónima de Pierre Delanoë e Gilbert Bécaud (1964) e que tentou aproximar politicamente a França e a União Soviética: "Moscou, les plaines d"Ukraine/ Et les Champs-Élysées/ On a tout mélangé/ Et l"on a chanté". No átrio do hotel, não sob um telhado de vidro, antes pelo contrário. Por cima de nós estava uma pintura num nicho circular do teto, que é um dos originais de artistas russos proeminentes da primeira metade e de meados do século XX, tal como, no primeiro andar, a vista pintada sobre a cidade de Moscovo, tratando-se neste caso de um diorama, uma pintura com tela de fundo curvo dando a impressão de tridimensionalidade e que mostra a ex-capital soviética e os arredores de Luzjniki a Zemlyanoi Val, datado de 1977 e colocado no hotel vinte anos depois da sua inauguração. Eu já com um pé fora do hotel e ela a cumprimentar-me com um aperto de mão cerrado - sabendo da minha origem -, disse-me: "Não se esqueça, a Rússia também é Europa!"

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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