Rui Chafes: "Primeiro está a Escultura, depois vem tudo o resto"

O escultor, Prémio Pessoa de 2015, inaugura amanhã a exposição "Incêndio", na Galeria Filomena Soares, em Lisboa
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Rui Chafes deixa-nos agarrar uma das 11 pequenas esculturas em bronze da exposição Incêndio, que amanhã inaugura na Galeria Filomena Soares, em Lisboa. A série chama-se É assim que começa... Cabem na palma da mão: é a medida delas. Aquelas contrastam com as 14 esculturas enormes de Incêndio, que são como colunas de uma catedral que ardeu, erguidas no ferro em que conhecemos Chafes. Tanto quanto ele nos permite. Não é por acaso que só deixou fotografar metade do seu rosto. Importa-lhe mais a obra a que, em silêncio, dedica os seus dias no ofício de escultor que se serve do ferro, do fogo, e da palavra.

Escreve para a exposição Incêndio: "A vida é combustão, ficamos sempre com o que nos resta depois do permanente incêndio." Tem mais que ver com purificação do que com destruição?

Eu vejo o fogo como purificação. Há um trabalho que eu também tenho vindo a fazer que são caixas de ferro com textos meus queimados, em cinzas. Quando eu queimo aquelas centenas de páginas não é no sentido de destruição, mas de purificação, de limpeza: chegar a um ponto de mais redução. Neste caso, esta exposição vai ter uma existência quase como uma catedral ardida, incendiada, uma catedral com uma floresta dentro.

As esculturas são quase colunas?

Sim, e tem sobretudo a ver com essa verticalidade. São colunas e são plantas, são cristais, são o que as pessoas quiserem, na verdade. Mas vão ter uma existência de uma catedral queimada, que já não existe, e portanto o fogo aí também passa pela ideia de destruição. Aquilo de que eu falo no texto é essa coisa óbvia, que tudo na nossa vida é combustão, queimamos.

Isto é importante para si: o que resta, e fica materializado, resistiu ao fogo?

Acho que os nossos sentimentos que resistem são os que resistiram ao fogo. Não só fisicamente há coisas que resistem ao fogo, como emocionalmente, ou a nossa própria memória, que funciona sempre ficando com as coisas que não arderam.

Levou isso para o seu trabalho como um método? Aquilo que fica materializado é aquilo que resistiu ao fogo, seja na escrita seja nas esculturas?

Nunca tinha pensado nisso, mas está bem observado. Os únicos textos que eu publico são os que eu não queimei. E as esculturas que aparecem são uma acumulação de material que resistiu à solda, à queimadura, ao fogo.

Fala das suas esculturas como sombras, embora elas por vezes correspondam a formas que nunca vimos no mundo. São recortes do espaço?

São, primeiro que tudo, acontecimentos no espaço. Uma escultura é um acontecimento no espaço, uma acumulação de energias com uma determinada formatação e esse tipo de definição de escultura é o que me interessa. Não é a forma propriamente cristalizada como fim, mas sim como meio que nos mostra um incêndio, um acontecimento, uma coisa no espaço. E as sombras muitas vezes são como se fossem um contra mundo, um mundo alternativo, ao avesso. Como se eu, em vez de olhar para os objetos, estivesse a olhar para as sombras que eles fazem no chão. E são essas sombras que depois transformo em esculturas.

E descobre essas sombras trabalhando ou primeiro elas aparecem e depois o Rui materializa-as?

Eu estou sempre a fazer desenhos e dessa quantidade enorme de desenhos - que estão todos guardados e arquivados em gavetas, e no meu ateliê - vão-se criando famílias de esculturas, porque eu trabalho quase sempre em séries. É raro eu fazer uma peça que não tenha continuidade. Vejo as esculturas quase como fotogramas de cinema, falta-me o resto do filme. É raro eu ficar só com um fotograma. Faço vários, para ter o filme completo. E essas formas partem dos desenhos, é impossível não partirem do desenho. O desenho é o princípio de tudo. O que faço de mais íntimo no meu trabalho é o desenho.

Por ter uma ligação imediata com o pensamento?

Sim, não tem mediador. As esculturas, mesmo trabalhando sozinho, têm a mediação das máquinas, do tempo. As esculturas maiores ou a fase de acabamento das esculturas que são feitas noutras metalúrgicas têm a mediação de outras pessoas, a pintura... É um pouco como a Arquitetura: são trabalhos que têm um processo muito mais lento e muito mais mediado, com mais passagens. O desenho é como um diário, é a pessoa sozinha a escrever num papel. Também por essa razão eu tenho mostrado menos desenho, porque tenho quase medo de os perder: a coisa que eu mais quero no meu trabalho são os desenhos. Só fiz uma exposição na vida com desenhos, na Galeria João Esteves de Oliveira. De resto, ofereço desenhos; mais facilmente ofereço um a um amigo do que o vendo, porque tenho muito pudor em vender uma coisa que me é tão próxima, tão íntima.

E não queima desenhos?

Não, não acontece.

O seu desenho é livre? Não é feito em função da escultura que vai surgir dali?

Os desenhos dividem-se em dois campos: tenho centenas de desenhos de esculturas, que são privados, não são expostos, e esses são projetos de esculturas. E depois tenho desenhos livres, com outros temas, o que não quer dizer que haja um muro que os separe. Há elementos que passam de um para o outro, como é óbvio. E há esculturas que nascem de desenhos que não foram desenhos de esculturas, porque há uma ligação.

Quando trabalha a uma grande escala, tem de ter as decisões já tomadas, porque as coisas são executadas por outros; um pouco como no cinema. O Bresson falava de preparar tudo como um general prepara a batalha.

É, mas o Bresson também deixava sempre um espaço para o imprevisto, porque dizia que esse espaço de imprevisto de repente podia dar sentido ao resto. Não existe arte sem transformação, portanto há um permanente processo de transformação que não é completamento programável, embora em grande parte tenha de ser. Quando eu faço uma peça de grande escala, ela tem de estar já muito, muito planeada, porque é esse o meu método de trabalho. E nisso também me sinto muito próximo do Bresson: as coisas estão muito definidas e depois há que executá-las.

Há obras que têm de ser executadas pelo Rui?

Sim, por exemplo, a que está na Avenida da Liberdade [Sou Como Tu]. Aquela peça foi inteiramente feita por mim, sozinho, no ateliê durante uns meses. É uma peça com muitos balanços, muitos equilíbrios, foi inteiramente feita por mim porque não há outra maneira de fazer. É como pedir a alguém para fazer as pinceladas de um quadro, não funciona. Só depois de estar feita é que foi para outra oficina onde foi acabada, soldada, rebarbada, polida, pintada. Quando é uma obra muito mais geométrica, como aqueles anéis de 10 metros que eu tenho, nem lhe toco, porque não faz sentido. É um desenho geométrico que tem de ser cumprido, portanto qualquer técnico pode fazer.

Qual foi o primeiro contacto que teve com o ferro?

Foi em 86, era estudante de Belas Artes.

Lembra-se da descoberta?

Sim, antes tinha trabalhado pedra, madeira, plásticos e quando comecei a trabalhar em ferro lembro-me de ter percebido imediatamente que aquela elasticidade e aquela relação com a dureza, com a brutalidade, com o peso, com as marteladas, com os cortes, com o fogo, era o que correspondia à minha natureza. No fundo, cada pessoa tem a sua natureza e tem de encontrá-la. Há pessoas que têm natureza de vidro, de madeira, de ferro, que é o meu caso. E depois fiz em 87 uma peça muito grande de oito metros na Fortaleza de Sagres e essa peça foi o selar deste pacto com o ferro.

O preto fez logo parte desse pacto?

Não. Eu nunca percebi nada de cor, não consigo perceber o que é uma cor. Para mim a cor, do ponto de vista artístico, não é uma intuição, é um processo muito mais complexo do que a forma. A forma é muito mais uma intuição, é um gesto que se faz. Para mim foi claro que se uma escultura tivesse cor era um objeto. Quis fazer uma escultura que é uma sombra, que não reflete a luz, que absorve a luz, ao ponto de ser quase uma inexistência. Portanto, em pouco tempo, no espaço de um ano ou dois, já estava a fazer as esculturas negras, em tom baço, com esta intenção de desaparecer, de se esconder. Eu pedi para essa escultura que está na Avenida da Liberdade não ser iluminada à noite, e portanto ela vive com o ritmo da luz, do sol, das estrelas, do céu. Há muita gente que nunca a viu. Eu tenho amigos que ainda não conseguiram ver a escultura, e ela tem cinco metros de altura.

A descoberta dela é sempre tardia, não é?

Exatamente. E eu quis começar a fazer esculturas que não se impusessem, que tivessem de ser descobertas. O contrário de uma escultura vermelha e brilhante é uma escultura negra e baça. Num instante, cheguei a essa anulação da cor, cheguei a este negro baço com esta intenção de me apagar, de não refletir, de me pôr na sombra. Também às vezes, muito menos, [uso] cinzento metalizado fosco: é uma cor parda, uma cor de ausência.

À medida que o tempo foi avançando as possibilidades do ferro foram aumentando ou diminuindo?

Aumentam todos os dias, é assustador. Ainda estou no início.

Quando vê o fim de uma série? Quando é que as peças se afinam todas?

Não é fácil, porque uma série tanto pode durar uns meses como uns anos. Há séries em que trabalhei sete anos, oito anos. E depois chega um momento em que não consigo mesmo mais, porque já esgotei todas as possibilidades que têm a ver com as formas, com a dimensão, com a necessidade de trazer aquele tipo de formas ao mundo. Há um momento em que me sinto incapaz de continuar. Mesmo que quisesse, já não me é possível, já não estou lá, já avancei.

Acontece perceber coisas muito mais tarde, em trabalhos antigos?

Essa é a minha esperança. De facto, não percebo nada do meu trabalho, fico sempre perplexo com as esculturas, sem perceber o que é que elas são. E quando percebo é mau sinal. Estou sempre na esperança de mais tarde vir a perceber. Já me aconteceu perceber agora - por fazerem sentido - coisas que fiz há 20 anos.

Quando trabalha executa algo que é maior do que o Rui?

Sim, sem dúvida. Eu limito-me a obedecer. Oiço uma voz que me diz para fazer as coisas e eu obedeço. E como trabalho sozinho estou permanentemente disponível para ouvir essa voz. Só trabalho com assistentes - e não é no meu espaço, é no espaço deles - quando são peças de grande dimensão, ou na fase dos acabamentos. Se tivesse pessoas ao pé de mim não conseguia ouvir essa voz. As pessoas ao falarem, ao respirarem, ao fazerem barulhos, iam impedir-me de ouvir essa voz.

Continua a trabalhar na casa da sua infância, no Guincho?

Sim, e vivo lá às vezes também.

Faz um horário regular?

Sim, paro para almoçar, faço o almoço.

Sempre em silêncio, nem música?

Que horror, [música] não. A única coisa são as máquinas e os martelos.

Não fica com saudades da vida?

Aquela é a minha vida. Se houver uma pirâmide, primeiro está a Escultura, depois vem tudo o resto. Isto pode ser politicamente incorreto, mas eu ponho a arte, e a Escultura, primeiro que tudo o resto.

Também porque através dela se consegue relacionar com os outros e com as outras gavetas da vida?

Não, consigo relacionar-me com a arte.

Nunca sentiu que fizesse aquilo para alguém?

Não. Pode haver trabalhos que eu dedico a alguém, mas a escultura para mim nunca foi um veículo para chegar aos outros, nem para chegar a alguém. Eu através da escultura chego a outras esculturas, a outros artistas...

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