Rosa Lobato de Faria (1932-2010)

Podia ser a personagem de um dos seus romances. Menina de boas famílias, muito bonita e bem comportada, teve uma infância feliz no Alentejo e passou a adolescência no Colégio de Odivelas, onde estudou, interna. Casou «em branco» aos 19 anos e aos 25, com três filhos, decidiu fazer uma revolução e escrever ela a sua vida, mesmo que direito, por linhas tortas. Vendeu enciclopédias, televisões, comida para fora, foi locutora, declamadora, actriz, poetisa, letrista, guionista. Voltou a ser mãe, voltou a casar, foi avó de onze netos. Despertou paixões, apaixonou-se, sofreu, chorou, soube o que era a vida. E um dia, aos 63 anos, descobriu-se escritora. Escreveu onze romances e um livro de contos para adultos, além dos livros infantis. A morte, da qual não tinha medo nenhum, veio buscá-la na terça-feira. O céu ficou de certeza um lugar muito mais alegre.*
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«Tenho impressão que sei até onde posso ir, e não é muito longe», dizia aos 40 anos, em 1973, ao Diário de Lisboa, na altura locutora e declamadora, ainda sem qualquer escrito publicado. Foi mais longe do que pensava ou estava só a ser modesta?
Não, não estava a ser modesta, não sou modesta. O que me aconteceu, e isso não podia prever, foi que ganhei uma nova vida quando descobri que era capaz de escrever romances. Isso só aconteceu em 1994, com o Pranto de Lucífer. Foi um presente que a vida me deu, completamente inesperado, e que me cumulou de felicidade. Em 1973, pensaria eu que os dados já tinham sido todos lançados, mas não, e é isso que a vida tem de surpreendente e de maravilhoso. Embora tivesse escrito toda a vida, não me achava capaz deste complicado exercício de pesquisa e análise, que é um romance. Como escrevia poesia, considerava que era essa a minha forma de expressão, uma coisa que não requer o mais pequeno trabalho, o poema vem ter com a pessoa, a pessoa diz «Olá, poema, ‘tás bom?, como és?, és assim?, o.k., escrevo-te aqui num papel e adeus, não se pensa mais nisso».

Para a maioria dos escritores, a poesia é o mais difícil.
Também não sou uma grande poetisa, não é? Mas é assim que se passa, o poema vem pronto ter comigo, toda a vida veio. Escrevi quilos e quilos de poemas, e portanto ganhei uma intimidade e uma cumplicidade com a língua que me permitia escrever qualquer coisa rapidamente, sem ser preciso aprofundar nada. Um dia, milagrosamente, dou comigo a escrever um romance. Primeiro não sabia de que se tratava, escrevi, escrevi, e quando cheguei às 240 páginas A4 pensei: «Isto se calhar não é bem um conto, nem uma crónica, nem um poema». Pois, afinal, era um romance, o Pranto de Lucífer, onde pensei que tinha posto tudo o que sabia e tinha aprendido naqueles meus 63 anos de vida. Mas entretanto não sei o que me deu, dá impressão que havia um botão no meu computador no qual nunca tinha carregado e um belo dia veio o anjo que me assiste, premiu o botão e desataram a sair romances.

Consegue explicar como?
Fiz questão de nunca parar de pensar. Esta coisa de as pessoas aos setenta anos já estarem velhas e sentarem-se numa cadeira à espera de morrer não faz bem o meu género. Por isso, toca a fazer o que vim cá fazer, que foi escrever. E é isso que tenho feito, com muito entusiasmo e alegria.

Os seus romances são atravessados pela paixão. Os seus personagens amam desesperadamente. A Rosa é uma apaixonada?
A paixão é uma doença, e tenho pena das pessoas que nunca a tiveram, porque é bom tê-la, mas hoje em dia seria uma desgraça apaixonar-me. Aos 20 não se ama como aos 45 ou aos 75, que tenho hoje. Já não tinha estrutura para aguentar essa doença, morria. Dói muito, é violento, mas aos vinte anos é extraordinário, é redentor. E o que se aprende... Outro dia, num programa de televisão em que participei, ligou para lá uma senhora que dizia que nunca tinha tido uma paixão assolapada por ninguém, toda a vida tinha sido felicíssima com o marido, só tinha conhecido aquele homem, e eu tive imensa pena dela porque se não sofreu, não se apaixonou, não chorou de raiva, nem de ciúmes, nem de insegurança, nem de abandono, sabe lá o que é a vida!

No tacanho Portugal dos anos sessenta, casada e mãe de três filhos, decide sair de Évora e ir tirar um curso de guia intérprete em Lisboa e começar a trabalhar. Um escândalo a que se seguiria outro, o da separação.
Eu lia muito e fui percebendo que era uma estupidez aquele tipo de vida, «agora casas-te com este e tens que o gramar para o resto da vida». Tinha três crianças, mas achei que isso não devia ser um obstáculo a que eu vivesse a minha vida, até porque os meus filhos seriam mais inteligentes e menos preconceituosos se rompesse com aquelas regras sem sentido. Tinha que experimentar as minhas próprias asas e saber quem era e foi o que fiz. Não foi fácil.

Descobriu quem era?
Levei tempo... mas hoje sei quem sou.

E até então quem foi?
Era uma pessoa à procura, não era conformada, nem feliz, nem contentinha, nada disso. E hoje tenho uma serenidade muito grande por já saber quem sou e o que quero.

Veio com os seus filhos para Lisboa, sozinha, vendeu enciclopédias, televisões, comida para fora, foi locutora, declamadora, procurou emprego como empregada de balcão. Virou a vida do avesso. Onde foi buscar a força?
Tinha três filhos, tinha de lhes dar de comer, e portanto não havia cá esquisitices, desde que fosse trabalho honesto, estava disposta a fazer. Sempre tive muita energia. Mas foi difícil. E depois havia uma coisa que jogava contra mim, que era o facto de ser muito bonita. As pessoas pensavam: se é bonita não pode ser inteligente, ou competente – hoje já não é tanto assim – e eu via-me muito aflita para arranjar trabalho. Mas, enfim, as coisas lá foram acontecendo e essa luta também foi muito importante. Aprende-se imenso com as vitórias e com as derrotas.

Não se leva demasiado a sério?
Não, em nada.

Começou a escrever poemas com seis anos, mas durante muito tempo teve relutância em publicar a sua poesia. O que a fez publicar?
Considerava que publicar um livro era uma coisa transcendente, não podia de modo algum pôr-me ao nível dos grandes poetas e pensar que tinha o direito de publicar, não tinha uma obra-prima... nem tia, nem parente afastada. Mas o meu actual marido, que foi um dos mais importantes editores portugueses do século XX, fez-me ver que eu tinha de ter a humildade de publicar os meus poemas, mesmo sem serem uma obra prima, porque tinham qualidade. Então, resolvi: «está bem, mas só publico o que escrever de hoje em diante, o que está para trás deito fora». E deitei.

A sua filha Teresa [Sacchetti] disse numa entrevista que a mãe não tinha defeitos, era linda e perfeita, só talvez por vezes estivesse demasiado fora do mundo real. Concorda? Porquê?
Tem toda a razão. Vou lá para o meu sítio e interesso-me muito pouco pela realidade quotidiana. Tenho uma empregada extraordinária, que adoro, que quando estou a escrever põe-se ao meu lado e diz-me assim, quase ao ouvido: «Sô dona Rosinha, Sô dona Rosinha», como se me estivesse a acordar, «desça lá que eu tenho de ir à mercearia».

E quando desce, como vê a situação actual do país?
Com um enorme sentido de humor. Ou a gente se suicida ou vê com humor. Não há alternativa.

Tem consciência da leveza com que fala dos livros?
Nada é muito importante, para dizer a verdade. Nem a morte, excepto talvez a morte dos outros, mas a própria morte não tem importância nenhuma.

Não tem medo da morte?
Nenhum.

Já disse que era uma mulher muito bonita e despertou muitas paixões. Como tem lidado com o envelhecimento?
Muito bem. Tenho muitas teorias (ri), para tudo tenho teoria, e uma delas é que a mulher e o homem têm de ser lindos é na idade fértil porque faz tudo parte de um plano universal para a reprodução da espécie. Claro que disfarçamos com um jantar à luz das velas, etc., mas no fim vai tudo dar ao mesmo: os homens – por isso é que não acredito muito na monogamia – têm de espalhar o seu sémen no máximo de fêmeas possível – coitados, uns lá se contêm, outros não – e as mulheres a mesma coisa, no tal plano universal a mulher gostaria de ser fecundada pelos melhores machos para ter os melhores filhos. A sociedade é que não permite nada disso. Portanto, quando acaba a idade fértil, para quê fazer operações para fingir que se é nova? É ridículo. Fisicamente, cai tudo um bocado, mas em compensação ganha-se serenidade, inteligência, humor, e uma tranquilidade perante a morte que não tínhamos quando éramos novas.

Acha que a sua vida teria sido diferente se fosse feia?
Provavelmente. Não era pior, mas era diferente. O ser bonita facilitou-me algumas coisas e dificultou-me outras.

É crente. Como é a sua relação com Deus?
Olhe, é um bocado tu cá, tu lá. Acredito tanto e confio tanto n’Ele, tenho um amor tão grande por Ele, que tenho a certeza que não me abandona nunca e tudo o que me manda de bom e de mau é para o meu bem.

Isso não é um pouco fatalista: o que vem, vem por bem, mesmo que seja mau?
Não, as coisas boas e más acontecem na mesma, é muito melhor você acreditar que é para o seu bem do que pensar que é para seu mal, ora bolas! Mas sim, sou um bocadinho fatalista. Costumo dizer que sou obscurantista militante. Acredito em tudo até prova em contrário. Acreditar enriquece imenso a vida.

O que não suporta nos outros?
A incompetência.

E o que não dispensa?
Depende da pessoa e da relação com ela, mas de um modo geral a inteligência e o sentido de humor são-me absolutamente indispensáveis.

O que faz no intervalo da escrita, se é que o tem?
Leio, cozinho e gasto um bom bocado do dia a sonhar. E represento, quando tenho trabalho. É divertidíssimo, mas nem sempre há, porque os actores nunca têm férias, estão é desempregados. Sabe porque é que gosto muito de representar? É que escrever, por muito prazer que me dê, é uma actividade solitária e a mim, que tenho tendência para ser bicho-do-mato – há épocas em que nem ao patamar da escada me apetece ir –, faz-me bem representar, porque é a grande paródia com os colegas e eu também gosto imenso disso. Representar é um jogo, muito parecido com escrever porque é interiorizar personagens, quando escrevo é isso que faço, meto-me na pele das personagens, de todas elas... até daquelas mães horrorosas, as pessoas devem achar que tive uma mãe horrível.

Pois...
Não, tive uma mãe maravilhosa, queridíssima, que é a minha grande paixão, mas escrevo mães horrorosas porque, pelo que tenho assistido, verifiquei que há mães que são capazes de dar cabo da vida dos filhos. Com 75 anos, imagina o que eu já vi, não é?

Teve quatro filhos. Como é que viveu a maternidade?
Acho que fui uma óptima mãe, mas isso se calhar é melhor serem eles a dizer. Não fui uma mãe muito presente porque trabalhava muito, tinha que os sustentar, não é? Mas penso que lhes dei os valores essenciais. Quando fiz a minha triagem de valores e deitei fora maior parte dos que me tinham enfiado na cabeça, fiquei com poucos, mas bons. E passei-os aos meus filhos.

*Esta entrevista, uma das últimas de Rosa Lobato de Faria, foi feita a propósito do lançamento do livro Alma Trocada e publicada na Notícias Magazine de 30 de Setembro de 2007.

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