Rosa absoluta, vermelho absoluto

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Carlos Marques Queirós publicou apenas dois livros, em edição de autor, no início dos anos 80. Os Passos Reencontrados é assim um reencontro com uma poética discreta e discretamente fascinante. Saído em 2002, este voluminho da colecção Pequeno Formato passou meio despercebido, e não merece. São poemas curtos, geralmente com sete ou oito versos, ritmicamente muito medidos embora sem recurso aos modelos clássicos, estribados em assonâncias e numa mancha gráfica simétrica. Um exemplo "há carris que conduzem a miséria automóvel, / ombreiras que limitam a largura das frases, / mansos alienados em camisas de forças / ou fechados nos quartos onde foram rapazes. // o divino ornamenta as pedras das lareiras / com palavras de plástico e rosas corrompidas. / não há senão respostas, feiras inteiras / que só vendem respostas, as perguntas perdidas" (pág. 83).

Como se vê, são poemas densamente referenciais, tendencialmente descritivos, mas nada quotidianos ou confessionais. Estes textos representam uma insistente "escavação", uma incansável desocultação do "pó dos séculos" (cito). O passado (e explicitamente a infância) aparece sempre entre neblinas, lamas e detritos "por sob o pó das dunas os rostos dessangrados / de pássaros assaltados pelo fuel. a noite / dissimula os fumos negros das indústrias. / nunca uma tela é uma lisa superfície de gelo. // um punhado de cinza ou de memória cobre / de uma capa de fósseis os poros das imagens. / nalgum dia de luz indóceis animais, os olhos / desenterrarão miragens em mínimos sinais"(pág. 44) . Não há nestes poemas nenhum acesso directo ao passado, e a memória aparece apenas como "memória imaginada". Mas existe uma estratégia deliberada e reincidente, que consiste numa aproximação por camadas, uma aproximação vocabularmente repetitiva que vai ao encontro de algum momento poético que desentranhe a memória soterrada "o século prolonga-se em torvas melodias, / distúrbios da memória, apressados coágulos. / vai-se velando o olhar nesse rosto indiferente / que olha devagar para a velocidade. // já passou a paciência essa porta da idade / fechada pelos escombros de um nulo incidente. / olha, mas a alma rememora avariada / tão só os dias pardos daquele triste outubro" (pág. 47).

Marques Queirós chama a isto "um movimento da alma", expressão de cunho romântico algo curiosa numa poesia tão material, material nas palavras e nas coisas, mas que mesmo assim investiga uma dimensão imaterial que se confunde com a dimensão poética "a lâmpada apagou-se, cederam / filamentos ao prolongado uso. / expulso do sossego, a casa / é o refúgio, a gruta que procura. // cego, a sua insónia é escura, / mas escuta a água cachoante / sob a porta, a voz rouca / das gralhas, os insectos no estrume. // parado contra a porta, à pouca / luz da lua, talvez por um instante / imagine, lá fora, uma aurora / de som dissipando o negrume" (pág. 66). Mas o negrume nunca realmente se dissipa, porque cada nova camada acrescenta nova sujidade "a água queima o olhar. nenhuma vela branca / descansa esse feroz enruguecer o rosto. / não pode ver sequer uma flor esfoliada / que arraste o remoinho deste vento de agosto. // o olhar, um relógio apenas temporário, cego / persegue o declínio da luz. até que a noite / o venha descansar, o sol sujo de sal / desdobra-lhe o disfarce de náufrago feliz" (pág. 59).

Ao contrário de Queirós, Ana Hatherly é uma autora prolífica. Depois de Itinerários (2003), uma colectânea sobre sítios e viagens, Hatherly revisita novo episódio biografista, agora numa meditação aparentemente sombria, mas que demonstra ânimo renovado. Fibrilações é uma valsa lenta, e tem algumas afinidades com o fabuloso texto do coma de José Cardoso Pires.

Estes poemas tiveram uma primeira edição restrita e agora reaparecem na Quimera, em edição bilingue, com tradução para castelhano de Perfecto E. Cuadrado. Ao vasto mundo (Itinerários) segue-se o vasto coração (Fibrilações). Mas não é o coração amoroso e romantizado do costume é o coração como máquina e como máquina doente. Os poemas (muito breves) entreabrem as cortinas para uma morte vislumbrada e provisoriamente vencida. Não há negrume nestes versos: a vida é entendida como aventura e como oportunidade para o acto criativo. Uma aventura que nenhum susto de mortalidade impede.

Se o coração é apresentado como uma rosa (a imagem número um da poesia) é porque não há diferença entre existência e existência poética "Olho / uma rosa vermelha / numa jarra vermelha /Vejo / o absoluto vermelho / da absoluta rosa" (pág. 59). A chave aqui é a palavra "absoluta" (um termo nada evidente numa autora vinda dos meios experimentais), que significa um acto de confiança na poesia mas também na existência. Assim se afirma que a vida apenas pára, não chega realmente ao fim. O desânimo aflora nalguns versos: "Que mundo desmaiado é esse / onde o final é / um branco esquecimento? / Com tímida audácia / florimos em nada" (pág. 73). Mas noutros é proclamada a mensagem essencialmente vitalista desta breve sequência: "Meu coração vibra / excessivamente / Fibrila sem medida / até na sua própria fímbria" (pág. 43).

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