Romeu Bolsonaro e Julieta Moro

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Em frente à mesma esquadra da polícia federal de Curitiba onde, por determinação de Sérgio Moro, o antigo presidente Lula da Silva cumpriu a pena de prisão que abriu caminho à vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, adeptos do ex-ministro e do presidente agrediram-se no último sábado.

O mundo dá voltas. O Brasil, capota.

Contam as biografias de Moro que a fatia mais larga da sua ascendência é do Véneto, Itália.

De entre os 16 trisavós de Bolsonaro, 13 têm origem italiana, a maioria também do Véneto.

E é no Véneto, em Verona, que se desenrola a mais pop das tragédias de Shakespeare.

Em "Romeu e Julieta", os Montecchi e os Capuleti, as nobres famílias dele e dela, passam a maioria dos cinco atos e das 24 cenas, além dos prólogos, a cultivarem um ódio visceral. Só no último suspiro da peça, sobre os cadáveres do casal apaixonado e do pretendente dela, o Conde Paris, as famílias se reconciliam.

No caso dos Moro e dos Bolsonaro foi ao contrário: só na última cena do, até agora, último ato é que o ódio se consumou, depois de uma longa história de amor.

Tudo começou por volta de 2015, era uma vez um anónimo juiz de província que sonhava ser Antonio Di Pietro, o promotor italiano da Operação Mãos Limpas.

E era uma vez um obscuro deputado cujas ideias exóticas, comparáveis às de mais um italiano, Mussolini, o tornavam habitué de programas de entretenimento.

Entretanto, Moro, graças à delação de um amigo corrupto, começou a descobrir crimes em série, a Operação Lava Jato, que atingiram deputados de todos os partidos - o mais atingido não foi o PT de Lula e sim o PP onde militava Bolsonaro.

Comparada à Mãos Limpas, a Lava Jato teve também traços da "Puerto", aquela operação que descobriu, algures na viragem do século, que o vencedor da Volta à França se dopava.

Com isso, entregou a camisola amarela ao segundo classificado, que afinal também se dopava, e com isso entregou a camisola amarela ao terceiro classificado, que afinal também se dopava, e assim sucessivamente até chegar ao mais insignificante dos ciclistas que só não se dopava porque ninguém se deu sequer ao trabalho de lhe apresentar uma seringa.

Bolsonaro era esse ciclista de fim de pelotão - tão fim de pelotão que nem Moro o levava a sério. O hoje presidente, compungido, contou na semana passada que o então juiz o tratou com indiferença quando ambos se encontraram por acaso num aeroporto em 2017.

Mas com Lula fora da corrida e outros políticos capazes de ganhar o Tour eleitoral, como Geraldo Alckmin, seriamente alvejados na sua reputação por causa da Lava Jato, a que somaram uma fábrica de fake news com o selo de qualidade Steve Bannon e uma facada caída do céu, o último do pelotão cruzou mesmo a meta em primeiro lugar.

Num momento de dificuldade, Moro ainda soltou uma delação do ex-PT Antonio Palocci - inócua mas com imenso destaque na mesma imprensa que agora se horroriza com Bolsonaro - supostamente prejudicial a Fernando Haddad, o candidato de Lula.

Eleito, Bolsonaro chamou para comandar o super ministério da justiça e da segurança pública aquele outrora anónimo juiz provinciano.

E Moro emprestou credibilidade ao governo daquele outrora deputado dos programas cómicos.

"Políticos brasileiros foram punidos graças ao patriotismo, perseverança e coragem de um juiz que é símbolo no meu país", dizia Bolsonaro, numa declaração pública de amor na sede da ONU.

"Não tivemos nenhum escândalo de corrupção no governo", elogiava Moro, cego por amor às organizações criminosas comandadas, segundo o ministério público, pelo ministro do turismo e pelo primogénito de Jair.

Os jornais, entretanto, foram noticiando cada vez mais atritos entre o clã Bolsonaro e o clã Moro.

"Fake news", respondia Carlos Bolsonaro, um dos maiores especialistas mundiais no assunto.

"Bolsonaro e Moro são um só", reagia Rosângela, mulher do ministro.

Mas o divórcio aconteceu mesmo.

E, enquanto em frente à esquadra adeptos do ex-ministro e do ainda presidente se agrediam, lá dentro Moro acusava Bolsonaro de sete crimes. Caso sejam provados, o segundo corre o risco de impeachment. O primeiro, por não os ter denunciado antes, de cumplicidade.

Comparada com esta, aquela tal tragédia de Shakespeare no Véneto não tem graça nenhuma.

O mundo dá voltas. O Brasil, capota.

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