"Sozinho/ Estou com frio com essa camisa/ De letras/ Por ela entra facilmente/ Todo mau tempo./ O vento pelo a, / Os lobos pelo b,/ O inverno pelo c,/ E estou tentando fazer o meu coração aparecer/ Com um título mais grosso,/ Mas congela-me o frio que entra/ Por todas as letras./ Fico feio nessa camisa/ De letras/ Por ela entra facilmente/ Respiração e batidas do coração./ Pelo a,/ Pelo b,/ Pelo c,/ O alfabeto está cheio de mim/ Por um momento" ("Sozinho entre Poetas", 1964). Estas são palavras - digamos, palavras, de intimismo - de Marin Sorescu, um dos grandes poetas romenos da segunda metade do século XX, para além de ter sido dramaturgo, romancista, ensaísta, editor, tradutor e pintor. Por ele, viajei pela Roménia através da escrita de um poeta que se sintetiza neste poema que escolhi. Ele também foi um viajante compulsivo por todos os continentes, mas manteve residência na Roménia durante toda a vida, o que incluiu o período posterior à Segunda Guerra Mundial, em que o Governo reduziu drasticamente as liberdades políticas e suprimiu vigorosamente qualquer dissidência com a ajuda da Securitate, a polícia secreta romena. Em 1964, começou um período de aparente abertura do Governo em relação às suas políticas de censura e, também, uma política externa mais independente dos soviéticos, sinalizando a liberdade de expressão, o que possibilitou à poesia romena experimentar um renascimento durante os primeiros anos do regime de Nicolae Ceaușescu (1965-1989). Surgiram vigorosas gerações poéticas, quando um clima de relativa liberdade criativa se instalou, fruto também das revoluções culturais que proliferavam um pouco por todo o mundo. Porém, esta abertura foi divagando para um registo mais repressivo na Roménia. Depois da queda de Ceaușescu, para além da sua vertente principal de escritor, Marin Sorescu chegou a Ministro da Cultura (1993-1995), já num período de transição democrática, no Governo de Nicolae Văcăroiu, sem ser membro de nenhum partido político. Ele tinha um percurso vasto na literatura e, em 1991, editara "Poezii alese de cenzură" (Poemas escolhidos pela censura), de que se destaca "Casa sob Vigilância". A travessia de Sorescu recorre à ironia, num estilo franco e realista, temperado com humor astuto, que se desenvolve no simbolismo, no existencialismo e na tentativa incessante de dizer coisas, "pelo ato de dizer alguma coisa, eu falho em dizer tantas outras coisas", segundo o poeta, numa citação recorrentemente apresentada. Segundo a Fundação em seu nome, "as reações de Sorescu a um regime político cada vez mais absurdo sempre foram habilmente equilibradas: ele nunca se envolveu no elogio servil de líder e partido normalmente exigido dos poetas romenos, mas também não se aventurou na dissidência. Ele ficou feliz em deixar a ironia fazer o seu trabalho. A escolha da ironia de Sorescu sobre o confronto tornou-lhe possível publicar livremente e com frequência", designadamente na revista que editou durante anos, "Ramuri", conseguindo ficar dentro dos limites esperados pelo regime romeno, o que não quer dizer que alguns livros não tenham tido reações por parte da censura. A sua jocosidade triste, mas também o seu cinismo bem-humorado, funde-se na sabedoria irónica que vê através de tudo, e ainda assim continua a ter esperança e desespero. Florbela Espanca escreveu que "a ironia é a expressão mais perfeita do pensamento" e Victor Hugo defendeu que "é pela ironia que começa a liberdade". A liberdade também nasce dos poetas. E os poetas sobrevivem para além da sua morte física, tal como os países para além das ditaduras. - Ser poeta sempre, até ao fim dos nossos dias!.Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.