José Manuel Costa e "Gato Bravo", lusitano companheiro de aventuras seguem a passo pela Canada Real, amanheceram no Poceirão e anseiam pela entrada no Alentejo profundo. Sábado, "se Nossa Senhora da Boa Viagem quiser", chegam a Viana do Alentejo, depois de percorridos 150 quilómetros. Cavaleiro e cavalo não perdem "a Romaria a Cavalo Moita-Viana do Alentejo que é tempo da comunhão entre a crença e arte guardada durante um ano". Com eles seguem mais 370 cavalos e 600 romeiros..Nos bastidores desta tradição centenária, interrompida durante dois anos devido à pandemia, reúnem-se cavaleiros e ganadeiros, veterinários, ferreiros e cozinheiros. Os cavalos irrequietam-se com as conversas cruzadas e o vento forte que parece determinado a não dar trégua este ano..Acertaram-se pormenores na véspera da partida, desde a tarde até alta madrugada, mas até chegar a Viana do Alentejo, cada paragem exige nova conversa, "para que os imprevistos sejam mínimos, haja segurança e boa saúde para os animais, afinal eles são o coração desta romaria", conta Miguel Almeida, atual presidente da Associação de Romeiros da Tradição Moitense.."Este ano os cuidados são redobrados. A certeza de que a romaria podia ser realizada só chegou há dois meses e normalmente são precisos seis para se organizar tudo". Miguel Almeida só espera que "Nossa Senhora da Boa Viagem, a seguir caminho com os romeiros, proteja a jornada até ao encontro com Nossa Senhora de Aires"..É outra romaria esta que Miguel Almeida agora comanda. Quando Isalino Mira e José Manuel Costa retomaram a tradição em 2000, depois de a romaria ficar parada mais de 70 anos, era tudo informal e para um grupo muito pequeno, de 30 romeiros que representavam a Irmandade do Tinto. Apesar do nome peculiar, garante o José Manuel Costa, "o seu objetivo sempre foi puramente devoto"..Quando o ganadeiro começou nestas andanças, "nem do caminho, nem da História se conhecia muito, tudo estava esbatido, esquecido"..Muitos romeiros garantem que a peregrinação de Moita a Viana do Alentejo pode ser mais que centenária. Há quatrocentos anos já seria feita com devoção à Senhora de Aires, mas os ritos pagãos que se lhe misturam, são de antigos povoados da região, que agradeciam a abundância da terra à mãe natureza..Criador de bezerros e cavalos para lides, José Manuel Costa recorda o desafio de retomar a tradição da romaria, "ambicioso logo na definição da Canada Real, antigo caminho público percorrido por cavaleiros e diligências"..Para desbravar mato e abrir portões nas herdades que cortam a Canada valeu-lhe a profissão que exerceu após o 25 de Abril. Quando o Alentejo foi todo ocupado pelo movimento da Reforma Agrária José Manuel Costa, então chefe do gabinete jurídico do Ministério da Agricultura foi colocado na Quinta da Malagueira, em Évora, para negociar os processos de desocupação das herdades. "Por isso sempre manteve uma boa rede de contactos com proprietários e cooperativas". Diz José Manuel Costa que "no caminho não há política, só devoção e camaradagem"..Pelas mãos da Irmandade do Tinto o evento cresceu passando de cerca de 30 para 300 romeiros. Foi necessária outra logística e a partir de 2002 a Câmara da Moita, em conjunto com a Associação dos Romeiros da Tradição Moitense e a Câmara de Viana do Alentejo começaram a gerir a romaria..Equipado à espanhola e montado em "Gato Bravo", o cavaleiro pica memórias, "como a de uma tal trovoada que apanhou os romeiros no meio de eucaliptal, os relâmpagos rebentavam sobre as suas cabeças". Ou de quando "uma carroça quebrou no meio de um chaparral e, sem que se esperasse ou alguém o chamasse, surgiu um homem de rebarbadora e máquina de soldar na mão para ajudar". Milagres, mistérios ou acasos, de um caminho que "é como ir a Fátima ou a Santiago [de Compostela], um momento de reflexão e prece"..Ao redor de José Manuel Costa outros cavaleiros e amazonas prosseguem caminho, solenes, de traje a rigor, muitos deles costurados pelas mãos de Ricardo Pinto, herdeiro de uma arte de família que vive a par com a romaria. Uma casa conhecida de norte a sul do país "e nos quatro cantos do mundo", onde se costuram peças cortadas por uma tesoura com cem anos e aplainadas por um ferro tão, ou mais antigo..Aos 49 anos, Ricardo Pinto já não se vê a fazer outra coisa. Há vinte anos cortou o primeiro traje de cavaleiro, "depois de lutar, com alguma rebeldia, contra a ideia de ser alfaiate", profissão que já era do seu pai, Mário Pinto..Para a Romaria a Cavalo de Moita a Viana do Alentejo, a Alfaiataria do Mário, "como todos lhe chamam desde que abriu portas há 51 anos", as encomendas chegam em meados de Janeiro e em Fevereiro já a velha Singer segue os carreiros de alinhavos dia e noite, tudo feito "à moda antiga". "Não é um trabalho de oito horas por dias", admite Ricardo Pinto e, "talvez por isso não haja quem queira dar continuidade à tradição". Pois costureiras e costureiros "há muitos e formações para novas gerações também, na alfaiataria é mais complicado"..Das mãos de Ricardo Pinto saem centenas de trajes por ano, cada conjunto custa em média entre 500 a 600 euros. "No Outono, muitos vão para a Feira da Golegã, outros pedidos de Primavera vão para a Romaria Moita-Viana do Alentejo, Colete Encarnado, Barrete Verde, corridas". Acabar com as tradições cavaleiras e taurinas seria, na sua opinião "um erro grave"..Fala com cautela dos "riscos do exagero". Acredita que "é preciso mudar, mas sem perder a identidade cultural e, sobretudo, medindo as consequências". Não seria apenas o seu trabalho a desaparecer se cavalos e toiros "fossem colocados no campo só para ver", ganadeiros, ferradores, veterinários, agricultores, "muitos perderiam o trabalho, as artes seriam esquecidas e uma parte da economia local desaparecia"..dnot@dn.pt