Romance de João Reis não fica soterrado na neve

O que diferencia um romance de um simples livro é o de ser capaz de levar o leitor até ao fim sem este se sentir enganado.
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A capa de A Avó e a Neve Russa tem um estilo aproximado ao que define a regra do romance de João Reis: um aroma infantil. Não no registo mas na principal personagem, a de um menino de 10 anos que precisa de salvar a avó, doente. Cujo mal é delineado gradualmente ao correr das duzentas páginas do livro, bem como a atitude constante do neto para a curar. Pelo meio, vão surgindo outras personagens, que nunca ofuscam o protagonismo do neto narrador, apenas potenciam as situações que se sucedem e substituem junto do leitor a ignorância que o jovem não pode suplantar.

Não avançando mais do que está escrito na contracapa, a trama deste romance é simples: "Babushka está doente." Segue-se uma identificação: a avó é russa, emigrante no Canadá e sobrevivente do acidente nuclear de Chernobil. Drama que poderia servir de cenário tanto a uma história horripilante como tanto se gosta de fazer em torno dos que viveram para contar o Armagedão russo, bem como uma narrativa piegas - os ingredientes ajudam em muito. Mas o autor consegue fugir aos estereótipos mais à mão para se colocar num texto deste género e sobreviver - ele e o livro - também a facilidades que a temática possibilitaria.

Antes de mais, esclareça-se que A Avó e a Neve Russa resulta de uma residência literária em Montreal após um "exílio" na Noruega e Suécia e o exercício da tradução de romances de autores escandinavos para a língua portuguesa, de escritores tão importantes como Knut Hamsun, Halidór Laxness e August Strindberg.

O passado do autor influenciou pela certa a opção por um cenário canadiano gelado e a vivência de uma família com origens russas, mas felizmente não escapa a um atravessar do Atlântico e o estabelecer da ação noutro paralelo que não aquele em que ficaria mais confortável. E a fuga aventurosa que ocupa a quarta parte do livro distancia-o ainda mais de algum facilitismo.

No meio disto tudo está a verdadeira intenção do romance, a convivência entre um neto em crescimento e uma avó doente. Bem como as dores do crescimento, o medo de ficar só e o confronto com o amadurecer a que a idade obriga, pormenores que transparecem para o leitor no seu comportamento escolar ou na tentativa de interpretar os sinais da doença.

Que, apesar de usar alguns trocadilhos que os adultos imaginam estar dentro da cabeça das crianças para estruturar o personagem, não deixa de lhe oferecer a espessura necessária para ser atraente. Que, apesar de fazer certas colocações políticas sobre a "Antiga Soviética" e o "capitalismo" do continente americano, quase resvalando para o posicionamento ideológico desnecessário num relato destes, não irrita o leitor.

Principalmente, João Reis consegue com a diversidade de personagens que vai introduzindo de forma cadenciada e que só têm como palco o apartamento lúgubre onde a avó e o neto vivem, as lojas das redondezas que estabelecem as pontes para a intenção salvífica do jovem, o hospital assético e desvalorizador do sofrimento, aguentar uma narrativa até ao fim sem tropeções e ainda manter o suspense e algum romantismo, a par da referida mentalidade jovem que fará em alguns leitores viajar até à sua juventude.

A justificação é só uma, a de que João Reis teve mão para de-senvolver a sua ideia e escrever um romance que traz algum acrescento ao que por aí se vai escrevendo neste registo literário.

A avó e a neve russa

João Reis

Editora Elsinore

224 páginas

PVP: 16,70 euros

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