Rodrigo Castelo, de quem a sorte de ser despedido fez chef
Encontramo-nos no Ó Balcão, no centro de Santarém, que já rendeu inúmeras distinções e merecidos prémios ao chef Rodrigo Castelo, renovado da sua versão original de taberna porque a casa assim o exigiu, pela sua evolução. Ali serve uma média de 40 pessoas por dia, apesar do espaço exíguo. Não é restaurante de massas, quem ali vai, sabe ao que vai e é assim que o chef quer que se mantenha. O seu foco é criar e o que mais gosta é de ver a reação das pessoas ao provarem o que quase todos os dias vai inventando na cozinha, onde se estreou aos 8 anos, com o pai, funcionário público, e a mãe, professora.
"Sempre passámos muito tempo em família na cozinha, somos muito ligados à mesa, muito gastronómicos, e o culto de cozinhar, os fins de semana recheados de amigos e mesas fartas, foram o ambiente em que sempre cresci." Cozinhar é-lhe de tal forma intrínseco que até os destinos das viagens de família eram escolhidos pelos restaurantes que queriam visitar por Portugal. "Sou um produto do que os meus pais me fizeram viver, do que me proporcionaram, e sou muito feliz com isso", garante.
Sem ter raízes profissionais na cozinha, foi um feliz acaso que fez dele chef de mão cheia, depois de se licenciar em Engenharia de Produção Animal e de embarcar numa carreira na indústria farmacêutica. "Era delegado especialista hospitalar e tive a sorte de ser despedido na crise de 2013. Tinha 40 mil euros e pensava que era rico. Então decidi abrir um restaurante", conta, rindo ao juntar que teve de recorrer a vários créditos para tornar o sonho real. "Hoje está tudo pago", sublinha, oito anos depois de abrir a porta - mas nem sempre o negócio que se faz chega para responder à qualidade que exige. O remédio são patrocínios, apoios, e até talvez a ajuda, já neste ano, da Galinha da Vizinha, churrasqueira aberta em sociedade com amigos em plena pandemia e cujos frangos reinventados saem que nem pãezinhos quentes.
Mas o Ó Balcão é sem sombra de dúvidas a menina dos seus olhos. "É o primeiro, o meu bebé", confirma, enquanto me vai apresentando ao que chega à mesa, com notas de rodapé. "Trabalhamos quase exclusivamente os produtos da região, o que temos aos nossos pés", diz, enaltecendo as maravilhas gastronómicas da sua Santarém-natal, de onde nunca quis sair.
De sorriso pronto e tratamento familiar e quente, apesar de não estar nesse dia na melhor forma - depois de os efeitos do stress lhe terem dado um valente abanão -, descreve enlevado a camarinha do rio (ainda mais pequena do que o camarão) estaladiça e deliciosa que faz par de luxo com o 75, vinho do Tejo de uma pequena produção local. Chega-nos também a manteiga de vaca com salva ali preparada, a mistura de azeites de Abrantes e para o fazer brilhar o pão de massa-mãe a que dá vida no restaurante, a partir de nove cereais moídos em moinho de pedra e com crosta de farinha de arroz para ganhar textura e ser mais probiótico. Vai conversando sem deixar de ouvir o que comentam os clientes que vão chegando, pedindo, comendo e lamentando a ausência de um ou outro petisco na carta onde se elencam as opções disponíveis - literalmente uma carta, dobrada em três e com direito a envelope e tudo, em que o chef Rodrigo Castelo se compromete a levar-nos numa viagem de sabores autênticos.
Conta que é ali, à mesa, que se expõe, bem como ao Ribatejo que lhe faz brilhar os olhos e a cujo valor junta a sua paixão e saber. "É aqui que acontece tudo, a alquimia que me faz muito feliz", diz, sempre com um olho desviado para os fogões atrás, ocasionalmente resolvendo hesitações que pressente no pessoal que se atarefa nesses bastidores ou aperfeiçoando a colocação de um prato.
Pede um bacalhau com brócolos e bimis e escolhe para mim o menu de degustação, de forma que experimente o máximo das suas criações, que se vão sempre renovando - por vezes causando a desilusão da perda nos habitués. Com a vaca curada na Agrária de Santarém a chegar - uma explosão que se revela entre o presunto, o carpaccio e a melhor carne vermelha que alguma vez provei e que se revela em ondas de sabor -, explica que criar é a sua vida e nesse caminho é levado pela aprendizagem constante.
"Comecei com uns 60 petiscos, uma maluqueira", relata. Desses ficaram os sabores do seu crescimento como cozinheiro e da sua insaciabilidade de aprender técnicas e de inventar. A "cozinha mais bruta" transformou-se também por via do tempo passado na Associação Profissional de Cozinheiros de Portugal, que lhe deu "ferramentas para poder sonhar mais", das experiências a cozinhar com outros chefs, que abraça tão frequentemente quanto pode. "Admiro muitos e aprendo com todos. Não quero ser melhor do que ninguém, só melhor do que eu próprio, todos os dias. É importante essa partilha desinteressada", garante, enquanto me empurra para o Coscorão do Rio até ao Mar - um cone feito em massa de coscorão salgada que encerra uma pirâmide cuja base se faz de creme de camarão de rio com lúcia-lima, a que se sobrepõe uma dupla de peixes de rio (fataça) e mar (atum), coroada por espuma de camarinhas. Dá instruções de como melhor saborear para tirar mais partido do prato, cujos ingredientes se vão revelando em diferentes sítios da boca, na língua, nas bochechas, as texturas distintas numa incrível complexidade que se desvenda.
Leva-me depois por outras duas experiências igualmente ricas, a açorda de alho e coentros com creme de alho, gema de ovo curada e peixe ralo; depois o pampo com creme de açafrão e couve grelhada. Tudo apresentado em porções de colher, disposto em loiça saída dos ateliês da Studio Neves - marca de cerâmica de Alex Hell e Gabi Neves, um casal de brasileiros que se radicou em Lisboa há um par de anos que hoje fornece os restaurantes dos melhores chefs.
"A cozinha tem uma coisa muito bonita, que é ir-se renovando, a técnica evolui sempre, os processos químicos avançam. E eu hei de aprender sempre, até ao último dia da minha vida não vou estar satisfeito." É esse espírito que tenta passar no restaurante, aos dez profissionais que com ele trabalham - e que nem sempre é fácil reter, mesmo a pagar acima da média. E que torna mais cara a fatura das despesas ao fim do mês, sobretudo por se tratar de um restaurante muito gastronómico.
"É um negócio difícil", reconhece Rodrigo, que me leva agora pela mão à presença das carnes: uma bucha de capado (um caprino adulto da região), com maionese fumada, pickles de couve roxa e amêndoa e rúcula selvagem, encerrados num taco de milho; um tubo de abóbora com escabeche de coelho; e um fois de fígados de galinha de aves e avelã torrada com uma gota de um licoroso da região. Salgado e doce, acre e fumo a encher-nos o paladar. "Quero que a cozinha seja um bailado na boca, que se sinta várias coisas em simultâneo, doce, ácido, amargo, salgado, e que se consiga identificar tudo, cada ingrediente, cada parte de cada composição."
Se as carnes são de suprema qualidade, os peixes dão-lhe um gozo especial e entende-se porquê conforme deslinda como torna os peixes de rio tão saborosos quanto podem ser. O que passa pela sua experiência de formação e pela ligação que mantém à Escola Superior Agrária de Santarém, onde ainda desenvolve produtos e faz os seus curados e fumados.
"Tento sempre, antes de o produto ser cozinhado, ao ser pescado ou caçado ou abatido ou colhido, pôr-lhe a mão logo no processo de primeira transformação. E até mesmo estar envolvido na criação do porco ou vaca, na plantação dos vegetais, perceber o ciclo da planta, como se alimenta. Porque tudo isso depois sente-se no prato, é a maneira de não matar o produto, de conseguirmos passar ao cliente a nova vida que o alimento pode ter no prato, de lhe darmos vida na transformação."
Explica em detalhe o trabalho que desenvolve com as 14 espécies de peixe de rio com que trabalha - "distinguem-se pouco, na origem, partilhando todos um sabor mais terroso, quente, doce que a maioria das pessoas que não estão habituadas não apreciam, apesar de cada um ter a sua fisiologia e anatomia." E aqui entra também em ação o seu lado de químico, nos processos a que recorre para transformar-lhes a textura e melhorar-lhes o sabor ainda antes de os cozinhar, através de várias curas distintas (com sal, com açúcar e sal, com sal e água das Pedras, com sal e gelo, com fumo...).
A vida de chef tem muito menos do romantismo que se imagina e muito mais de sacrifícios - Rodrigo passa os dias no restaurante e as noites a criar novos pratos. Se sai é para visitar produtores ou cozinhar com outros chefs. Mas aos 41 anos nada disso o desanima - até porque conta com o apoio incondicional de Ana, a namorada de liceu, psicóloga, hoje sua mulher e mãe dos dois filhos, o Martim e a Mimi, que também já veste o avental com gosto.
Chega o prato vegetariano com a explicação de que naquela cozinha nada se desperdiça - das ramas que não são comestíveis faz-se o óleo verde que rega a maionese de bimis e alho francês grelhados, ao lado de uma neve de avelã. A cor explode em cada ingrediente como se vista em alta definição. O sabor consegue ir ainda mais além e Rodrigo explica porquê: "A comida é como a música, não pode ser monocórdica, tem de ter variações, tem de ter refrão."
Se a sua vida se faz na cozinha - mesmo em férias ou folgas é na cozinha e entre amigos que sempre se revê -, o que seria se não fosse cozinheiro? "Acho que era fumeiro ou talhante... ou talhante com fumeiro próprio - tive essa experiência em miúdo e adorei, gosto imenso de todo o processo da carne, a transformação, o desmancho das peças, os cortes. Isso apaixona-me."
Pergunto-lhe como vê os movimentos animalistas crescentes e apressa-se a dizer-me que apesar de comer hoje mais peixe do que carne, por opção, continua a gostar de um belo bife, de uma suculenta costeleta. E que o equilíbrio é a chave de tudo, na cozinha como na vida. De resto, lida mal com extremismos - e não aceita que este tipo de movimentos tente sempre avançar pela proibição e pela imposição. "Eu fui forcado 11 anos, no Aposento da Moita e ainda que não queira ver os meus filhos na arena, eles são aficionados e brincam aos toiros, não porque eu lhes tenha imposto alguma coisa mas porque gostam. E devem ter essa liberdade. As touradas são uma tradição secular e que deve manter-se. Não podem proibir os meus filhos de ir a corridas. Há que haver tolerância e respeito por todos, mesmo que seja preciso uma adaptação, um encontro de vontades, que os dois lados se sentem à mesa e conversem."
Passa a explicar-me a sopa de peixes de rio, cuja base nasce das aparas e espinhas da fataça e traz inteiro um filete de lúcio de meia cura e ovas de barbo e croutons, reforça que respeita quem opta por um estilo diferente do dele, mas exige que também respeitem o seu.
Apesar dos meus protestos, vem ainda mais um cremoso de caranguejo e lagostim para provar e uns pezinhos de coentrada com berbigão e pickles de pera. "Não comas tudo, experimenta só", diz-me, como se fosse possível não nos lambuzarmos com cada uma das propostas que nos põe à frente.
Ao fim de duas horas de excelente conversa e da deliciosa comida preparada por Rodrigo Castelo no Ó Balcão, chega o Café das Velhas para adoçar o expresso, uma sobremesa inspirada na avó - que mergulhava a rabanada de pequeno-almoço na malga de café com leite, e que aqui me chega coberta de açúcar queimado e aroma a canela. Um final pouco doce e extraordinariamente aromático, com o paladar reconfortante dos serões à lareira.
É com essa delícia que fecha uma refeição irrepetível - mesmo porque a probabilidade de aqueles pratos já terem dado lugar a nova criatividade do chef é tão grande quanto o talento deste escalabitano, cozinheiro de mão cheia. Difícil mesmo é voltar a Lisboa depois de tudo isto. Mas vamos de (barriga e) alma cheia.