Rocinha há dez dias em clima de guerra civil
A maior das 1025 favelas do Rio de Janeiro vive há dez dias em clima de guerra civil por causa de um conflito entre grupos rivais pelo controlo dos pontos de venda de drogas, especialmente cocaína. Além das centenas de tiroteios entre os criminosos, os cerca de 70 mil habitantes da Rocinha, situada na turística zona sul da cidade, ainda têm de conviver com a presença de quase mil soldados que cercam a região desde sexta-feira em busca dos traficantes, fora milhares de agentes das polícias civil e militar.
Estão contabilizados até agora seis mortos e quatro feridos, um deles um adolescente, vítima de bala perdida. Há recolher obrigatório e cortes frequentes de energia. Os transportes e os postos de saúde funcionam a meio gás. As escolas estão fechadas - oito mil alunos, na Rocinha e nos bairros vizinhos da Gávea e de São Conrado, não puderam ir às aulas. Habitantes receiam sair das suas casas e outros que tiveram de se ausentar da favela temem fazer o caminho de volta. Os polícias pedem à população para denunciar criminosos mas os traficantes proibiram o uso de telemóveis no local, além da gravação de áudios e vídeos.
O ministro da defesa Raul Jungmann sugeriu à nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, a criação de uma task force à semelhança da Operação Lava-Jato mas que em vez de combater a corrupção vise a luta contra a criminalidade. "Aguardo resposta dela e a partir daí iremos reunir o gabinete de segurança institucional e o ministério da justiça para combatermos o crime organizado e estado paralelo que ele gerou", afirmou Jungmann.
Moradores da Rocinha ouvidos pela imprensa brasileira desdenham da presença do exército. "Melhorou imenso com eles", disse uma moradora anónima em tom irónico. "Eles estão aqui agora porque o problema alastrou às zonas das classes médias e altas da cidade e porque está a decorrer o Rock In Rio [festival de música], e depois, como vai ser?".
As forças estaduais e federais em ação na Rocinha já prenderam 18 pessoas, incluindo dois menores, e apreenderam 23 metralhadoras, oito granadas, bombas de fabrico caseiro, mais de duas mil munições, pistolas e carregadores. Os confrontos alastraram entretanto para outras favelas, como a do Jacarezinho e do Turano, na zona norte da cidade, à procura de membros dos gangues em fuga. O mais provável é que a maioria dos criminosos esteja escondida nas matas, razão pela qual de noite há buscas de helicóptero.
A tomada recente do poder na Rocinha pelo traficante Rogério 157, cuja recompensa por informações sobre o seu paradeiro é de 50 mil reais [cerca de 14 mil euros], está na base do conflito. Rogério era guarda-costas de Antônio Francisco Bonfim Lopes, conhecido como Nem, que liderou a região de 2007 até ser preso em 2011 mas manteve ascendência sobre a comunidade.
Ao expulsar da Rocinha a mulher do ex-chefe Danúbia Rangel e ao executar no mês passado o seu ex-braço-direito Ítalo Campos, Rogério 157 tornou-se o novo "dono do morro". E começou, à revelia do que vinha sendo prática na favela, a cobrar taxas de distribuição de gás, para a circulação de moto-táxis e outros serviços básicos à população.
Nem, apesar de estar detido numa prisão de segurança máxima em Porto Velho, capital da Rondônia, a mais de 3500 quilómetros do Rio, ordenou então, segundo a investigação da polícia, que os seus homens derrubassem Rogério 157, iniciando o conflito. Na segunda-feira, a tropa invadiu a casa de "157" e encontrou uma mansão ampla, com vista para toda a favela e recheada de aparelhos tecnológicos de luxo mas não o seu dono, que segue foragido.
Dos 70 mil habitantes da Rocinha, 32% são jovens de 15 a 29 anos. Há 23 mil domicílios e 71% dos chefes de família vivem com menos de 540 euros mensais.
São Paulo
PROTAGONISTAS DA GUERRA
Antônio Lopes - "Nem"
Preso
Distribuía guias de programação de TV na Rocinha quando uma doença da filha, em 2000, o fez pedir dinheiro ao traficante Lulu e entrar no crime. Foi subindo na hierarquia até substituir Lulu, entretanto executado, em 2007. O jornalista Misha Glenny, autor de O Dono do Morro, define-o como "déspota esclarecido". Forjou a própria morte em 2010 para escapar da polícia mas foi detido em 2011, na mala de um carro. Deu, da prisão, a ordem para iniciar a guerra.
Danúbia Rangel
Foragida
Viúva de dois traficantes, a quarta mulher de Nem pensou em assumir a Rocinha após a prisão do marido. No entanto, Rogério 157 [em baixo], expulsou-a da comunidade. Como é mulher, e o mundo do tráfico é considerado machista, vem de outra favela, a Maré, e tem um estilo de vida de ostentação, com fotos constantes nas redes sociais, de cabelo pintado, corpo bronzeado e decotes, é mal vista na comunidade.
Rogério Silva - "157"
Foragido
Guarda-costas de Nem, foi um dos líderes do assalto em 2010 ao Hotel Intercontinental, vizinho da Rocinha, que serviria para desviar as atenções da polícia e permitir a fuga do chefe. Com a prisão de Nem, expulsou Danúbia, terá morto Perninha [em baixo] e mudou a política na Rocinha ao exigir taxas à população. Motivos para Nem declarar guerra ao ex-aliado.
Ítalo Campos - "Perninha"
Morto
Braço-direito de Nem, pretendia recuperar a favela para o grupo do ex-líder e chamar Danúbia de volta à Rocinha quando foi encontrado morto a 13 de agosto num carro por ordem de "157", segundo a investigação da polícia. Foi a partir desse dia que a política de taxas em troca de prestação de serviços entrou em vigor na Rocinha.