Agora estou aqui, em Ronda, desde há uma semana." Foi esta carta, dirigida à princesa Thurn und Taxis, sua anfitriã no castelo de Duíno, que permitiu determinar a data da chegada do poeta à cidade, dia 7 de Dezembro de 1912. Vindo de Sevilha pela estrada de Marchena, hospedou-se previsivelmente no melhor hotel da cidade, o Victoria (no Cairo, estivera no Shepheard"s, como Eça), "bastante caro", que "o diabo sugeriu aos ingleses que construíssem aqui", tendo por clientela os britânicos da vizinha Gibraltar. Depois, mais apaziguado, descrevê-lo-á como "um hotel confortável e familiar em que estou completamente sozinho". Decidira ir até Ronda, terra de bandoleiros célebres, a conselho da família do conde de Vilallonga, que conhecera em Sevilha. Ainda lhe ocorre viajar até Marrocos, não longe, mas acaba vencido pelo temor que "este tom vermelho-escuro seja ofuscado por um manto de luz branca". Apaixonara-se pela tonalidade sombria de Espanha, não queria perder-lhe o rasto nem atraiçoar-lhe a memória..De dia, percorre as ruas estreitas, vai às cercanias da cidade, entra na igreja de São Francisco, no bairro sul, comove-se em Nuestra Señora de la Cabeza, escavada na rocha, deslumbra-se com as casas senhoriais e as suas pedras de armas, que compara a granadas delicadamente polidas. Decerto terá visto os quatro índios nus que adornam a fachada do palácio do marquês de Salvatierra, bem como as colunas jónicas da Vírgen de los Dolores, com figuras que parecem homens-pássaros ou anjos caídos, tema fundamental da sua lírica. Não serão, todavia, as igrejas e os palácios o que mais o seduz em Ronda, "uma pequena cidade sem monumentos dignos de nota, a não ser o monumento perene de toda a sua existência, de toda a sua atitude, de toda a sua localização heróica, alcandorada a mãos cheias sobre um enorme e perigoso promontório de rochas, a partir do qual, de todos os lados e como que para ganhar distância, se erguem ao fundo montanhas que formam um amplo círculo". A sinuosidade do rio, que corre no fundo de uma garganta de 150 metros, lembrar-lhe-á a passagem do povo de Israel através do mar Vermelho..Deparou vezes sem conta, como é inevitável, com a praça da Real Maestranza de Caballería, das glórias de Pedro Romero, que Goya imortalizaria e que em vida matou mais de seis mil touros, rezam as lendas rondeñas. Foi aí, nessa praça feita de pedra, a mais antiga de Espanha, que se deu um dos muitos e míticos duelos entre Luis Miguel Dominguín e um filho de Ronda, Antonio Ordoñez. Aquela fabulosa temporada de 1959 será narrada por Hemingway em The Dangerous Summer, o seu último livro. Fotografias da praça de Ronda mostram nas bancadas, de charuto na boca, outro aficionado vindo das Américas, Orson Welles, cujas cinzas foram lançadas à terra, por seu desejo expresso, na herdade do velho amigo Antonio Ordoñez..Anos depois da sua permanência na cidade, Rainer Maria Rilke dirá que teve uma estranha sensação de déjà vu ao chegar ali. Lembrou-se então que, numa das viagens à Rússia com Lou Andrés-Salomé, folheara à noite um livro de memórias de um jovem aristocrata em tour pela Europa, e que nesse livro existia uma gravura de Ronda. Na realidade, tratava-se de uma obra da autoria de Nicolai Tolstoi, parente afastado de Léon Tolstoi, mas esse pormenor pouco interessava aos seus devaneios poéticos. Para ele, o essencial era a descoberta de uma singular coincidência entre dois extremos - Rússia e Espanha - e as potencialidades literárias dessa circularidade fortuita..Ao fim de poucos dias, Rilke confessa estar fascinado, como todos os mortais, pelo "incomparável fenómeno desta cidade, assente sobre uma mole de duas rochas cortadas a pique e separadas pelo desfiladeiro estreito e profundo do rio". Espanta-se acima de tudo com as cordilheiras vizinhas, cobertas de abetos centenários: "e ao fundo, como se tivesse recobrado forças, ergue-se a montanha pura, montanha atrás de montanha". Conquistado pelos sortilégios da "singular Ronda", classifica-a como "indescritível" e sobre as suas escarpas derramará elogios infindos, em êxtase: "Não há coisa mais inesperada no mundo do que esta cidade espanhola, selvagem e montanhosa", dirá numa carta à contessina Pia di Valmarana, a quem afirma mais tarde que "o que mais me ocupa aqui são as amendoeiras em flor". "Amendoeiras em flor: a única tarefa que podemos realizar diante delas é reconhecermos, sem margem para dúvidas, que estamos perante uma manifestação do terreno", escreve no seu diário. Porém, uma vez regressado a França, numa missiva dirigida a Katharina Kippenberg, confidencia-lhe que o que mais lhe interessara em Ronda fora, afinal, a vida dos pastores daquelas faldas rochosas, a saída às madrugadas dos rebanhos para os montes, o recolher vespertino dos gados derradeiros..À noite, quando consegue vencer a congestão ocular de que há muito padece, lê o Quixote numa tradução alemã, mas acha-o "pueril" para escândalo dos autores espanhóis que ainda hoje estudam a sua passagem pela Toledo de El Greco, um lugar que sonhava visitar há muito, e por Córdova, a mourisca, onde tem um encontro quase metafísico com uma cadela de rua. "Por um acaso, oh, por tão grande acaso, celebrámos juntos uma espécie de missa, um acto que, em si mesmo, mais não foi do que dar e receber (...) devemos estar maravilhosamente preparados para estabelecer relações divinas", dirá em carta a Marie von Thurn und Taxis, a propósito da oferta do torrão de açúcar do seu café a uma cadelita vadia e grávida da cidade de Córdova..Nada escreve durante um mês em Ronda, salvo cartas e apontamentos de viagem. Aos amigos próximos continua a queixar-se de moléstias no corpo e sobretudo de torpores na alma que o levam ao limiar do suicídio ("dada a estranha maneira que tenho de lidar com a minha natureza, o auxílio de um médico seria aqui tão supérfluo como o de um sacerdote entre mim e Deus"). Apenas a 6 de Janeiro retomará a criação literária, diminuindo o ritmo da correspondência. Conclui então "Perlen entrollen" / / "Rolam pérolas", poema que começara a conceber em Veneza em Julho do ano anterior..Em meados de Fevereiro, volta o imenso mal-estar, recorrente e eterno. Rilke atribui-o ao clima: "Não me sentia bem nos últimos dias da minha estada ali... nas manhãs, era Fevereiro, mas ao meio-dia já era Agosto, pelo menos." Acossado pelo frio e pelas dívidas, regressa a Paris, com uma paragem de oito dias em Madrid para admirar os Grecos do Prado e comprar reproduções de pintura antiga. Estivera na muy noble y leal ciudad de Ronda mais de dois meses..Depois veio a guerra, e a incorporação forçada no exército austríaco, que tanto fez sofrer o seu temperamento frágil. Acabada a guerra, as Elegias de Duíno, viagens pela Suíça, leituras de Proust. A doença, cujos primeiros sintomas se manifestam em 1923, obrigam-no a frequentes internamentos no sanatório de Valmont. Paul Valéry, que o visitou na época, ficou impressionado pela solidão profunda em que o poeta vivia, tendo recusado a generalidade dos tratamentos e dos remédios que os médicos lhe prescreveram. Rilke morreu de leucemia em Valmont, a 29 de Dezembro de 1926. Dez anos depois, durante a Guerra Civil, a praça de touros de Ronda serviria como parque automóvel, campo de concentração e alojamento do Grupo de Artilharia de Montanha. E, noutra guerra, os nazis ocupariam o castelo de Duíno, aí construindo um bunker que mais tarde seria usado pelos Aliados como depósito de combustível. Em Ronda há hoje uma avenida com o nome de Rainer Maria Rilke, e bustos de Hemingway e Orson Welles. Antonio Ordoñez, a quem ergueram uma estátua em 1996, baptizou na igreja de Padre Jesús o seu filho Cayetano, que com o nome "Niño de la Palma" lhe sucederia nas cruéis artes do toureio. O Hotel Victoria ainda lá está, mas foi remodelado a fundo e actualmente oferece spa e piscina, o que por certo teria horrorizado o autor de Cartas a Um Jovem Poeta..Em certas manhãs de Ronda, o sol ergue-se acima das nuvens, que lentamente se esfumam a nossos pés. A oitocentos metros de altura, a cidade é sequestrada por uma massa branca e espessa, ficando suspensa nos céus. E nós ali no alto. A sós, com Deus..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.