Foi há pouco mais de dois anos, no verão de 2018, que Ridley Scott anunciou a sua decisão de adaptar Sapiens - História Breve da Humanidade, o bestseller de Yuval Noah Harari sobre o modo como o homem se tornou a espécie dominante do planeta Terra. Em boa verdade, não se sabe como o projeto evoluiu, se para um documentário cinematográfico, se para uma série televisiva. De qualquer modo, o anunciado envolvimento de Asif Kapadia, "oscarizado" pelo seu documentário Amy (2015), sobre Amy Winehouse, faz prever uma abordagem em que a observação dos factos se pode cruzar com uma elaborada vibração dramática..Na trajetória de Scott, tal ambivalência não é estranha. Vários dos seus filmes estão marcados por temas que envolvem a origem e o destino da humanidade, seja em termos históricos seja no plano simbólico. Afinal de contas, com Exodus: Deuses e Reis (2014), ele arriscou mesmo no domínio da epopeia bíblica, fazendo o retrato de Moisés e Ramsés II - não será, convenhamos, um dos momentos mais felizes da sua filmografia, mas não deixa de ser um desafio a uma tradição de Hollywood que tem em Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille, o seu clássico absoluto..Seja como for, a eventual adaptação de Sapiens não pode ser desligada da sua atração pelos exercícios de investigação e especulação científica. Blade Runner (1982), por certo o título mais mítico da sua vasta filmografia, pode servir de sintoma exemplar..Claro que Blade Runner vive, antes de tudo mais, de um "sentimento" indissociável da grande tradição da ficção científica, tendo aliás como ponto de partida o clássico Do Androids Dream of Electric Sheep?, romance de Philip K. Dick publicado em 1968. E escusado será sublinhar que o filme, protagonizado por Harrison Ford, gerou uma imensa e contrastada descendência, incluindo a sequela Blade Runner 2049 (2017), dirigida por Denis Villeneuve, projeto do qual Scott se foi distanciando (considerando-o mesmo demasiado longo), ainda que o seu nome nele figure como produtor executivo..Blade Runner, mais do que uma variação sobre matrizes da ficção científica, talvez se possa classificar como uma ficção que integra a ciência, experimentando os seus limites. Isto porque a existência dos "replicantes", essenciais em toda a estrutura dramática do filme, exponencia uma questão de fundo, obviamente herdada do livro de Dick. A saber: será que a proliferação de entidades "robóticas" ou "humanoides" poderá fazer diluir a própria noção de humanidade?.A pergunta remete-nos para o filme que, de facto, conferiu a Scott um decisivo estatuto artístico, industrial e comercial. Surgiu três anos antes de Blade Runner, portanto em 1979, e talvez continue a ser o título que a maioria dos espectadores mais imediatamente associa ao seu nome: Alien, entre nós lançado com o subtítulo O Oitavo Passageiro..A sua invulgar eficácia nasce da hábil conjugação de dois vetores tradicionais, um de ficção científica, outro enraizado no cinema de terror: por um lado, temos uma nave espacial que transporta uma pequena tribo humana numa missão muito para lá do aconchego do planeta Terra; por outro lado, há um monstro alienígena cujos poderes parecem indestrutíveis. Tudo isso acontece, não num universo alternativo, de cenários mais ou menos artificiosos, mas através do reforço (científico, justamente) dos elementos de encenação: a dimensão fantástica do horror eclode, assim, no interior de cenários recheados de elementos realistas..Mesmo não esquecendo as muitas diferenças de tom e abordagem, talvez se possa dizer que filmes como Alien e Blade Runner são herdeiros diretos do realismo cenográfico que Stanley Kubrick pôs em prática com o seu emblemático 2001: Odisseia no Espaço (1968), além do mais contando com o aconselhamento (científico) de técnicos da NASA..E não deixa de ser curioso relembrar que o triunfo de Scott (inglês, nascido em 1937) nas estruturas globais de Hollywood seja inseparável da sua consolidação também como produtor. Foi, aliás, muito cedo na sua carreira, em 1970, que ele e o seu irmão, Tony Scott (1944-2012), formaram a companhia Scott Free, nome associado à maior parte dos respetivos trabalhos de realização..Ironicamente, mesmo com aqueles dois títulos tão marcantes na evolução das matrizes da ficção científica, Ridley Scott assinou algumas das suas realizações mais originais em domínios bem diferentes. Um bom exemplo poderá ser Thelma e Louise (1991), filme com a notável dupla Susan Sarandon/Geena Davis que há muito entrou nas referências obrigatórias de um certo feminismo cinéfilo. Ou ainda O Conselheiro (2013), não um dos seus grandes sucessos de bilheteira, mas seguramente um dos filmes mais crus e desencantados que já se fizeram sobre o tráfico de drogas..Será que vamos poder ter brevemente uma recriação (cinematográfica ou televisiva) do livro de Yuval Noah Harari?... Não sabemos, mas é um facto que na agenda de projetos de Scott como produtor/realizador está mais uma história anterior à ação de Alien. Sem data anunciada, essa "prequela" irá juntar-se às outras duas que ele também dirigiu: Prometheus (2012) e Alien: Covenant (2017)..Científica ou não, a ficção alimenta-se dos seus próprios monstros.