Ricardo Robles. Uma casa muito engraçada

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Oh! Quel farouche bruit font dans le crépuscule - Les chênes qu"on abat pour le bûcher d"Hercule!, o imortal verso de Hugo, que serve de pórtico e mote a Quando os Robles se Abatem, de André Malraux, logo nos acorre à lembrança quando evocamos um outro Robles tombado, este Ricardo e de osso, o "Xeca" de petit nom, que não será recordado certamente pela dissertação com que em 2007 se apresentou ao Técnico para o grau de mestre: Previsão do Comportamento de Betões com Agregados Reciclados. Levantamento do state of the art internacional.

Ainda assim, terá sido uma certa imprevisão quanto ao comportamento dos betões agregados, aliada a uma enorme dose de ingenuidade política, e não menor desvergonha, o que ditou a abrupta e aparatosa queda do cometa Robles, até então em ascensão fulgurante no firmamento bloquista, doravante maculado por um episódio que, à faute de mieux, e em linguagem imobiliária, poderá ser classificado como, digamos, uma monumental barraca.

Até então, o jovem Xeca, barbinha negra, olhinho azul, fácies convicto, lábio matreiro, fazia muito o bonito nas hostes alternativas, até porque às competências técnicas e políticas juntava predicados vivenciais hoje muito em voga, apresentando-se como surfista, snowboarder e adepto do SLB. Apelidado pela revista Flash! de "bonitão do BE" e "um dos candidatos municipais mais sexy do país", Ricardo Amaral Robles nasceu em Almada, a 20 de Maio de 1977, mas foi registado por Lisboa, e é filho de militar, razão pela qual passou a infância em Santa Maria dos Açores e, mais tarde, no Seixal. No oitavo ano de escolaridade já ia a manifestações e, não muito depois, participou nos protestos contra a célebre PGA. Em 1995 entrou no Técnico, fez-se dirigente da associação de estudantes, combateu fervorosamente as praxes. De permeio, cumpriu praxes de uma outra ordem, as liturgias do extremo-lateral-esquerdismo: acampamentos de jovens, colaborações com o SOS Racismo, candidatura autárquica das Esquerdas Unidas, idas de autocarro até Génova, para as acesas lutas contra o G8. Esteve também no Fórum Europeu de Florença, em 2002, no Fórum Social de Porto Alegre, no ano seguinte, e, durante três meses, percorreria lugares clássicos do guevarismo: Uruguai, Argentina, Bolívia, Peru e Equador. Nos tempos dos combates estudantis, recordou Capicua, sua amiga de adolescência, o Xeca andava sempre de calções, fizesse chuva, fizesse sol, o que talvez seja sinal da eterna candura menina que acabaria por vitimá-lo na política.

Em 1999, Robles participou na fundação do Bloco de Esquerda e a seguir fez o Erasmus em Copenhaga, especializando-se em reabilitação urbana e em eficiência energética. Seis anos depois, em 2005, assumiu a liderança da concelhia de Lisboa do BE, acabando eleito em 2013 para a assembleia municipal da cidade e entrando, em 2017, na vereação alfacinha com o pelouro da Educação e dos Direitos Sociais. Enquanto isso, em 2014, a meias com a irmã, migrada na Bélgica, comprara uma casa à Segurança Social, ou melhor, um prédio, e dos grandes, onde fez obras e que depois pôs à venda numa imobiliária de luxo. Valor da compra: 347 mil euros; valor da venda: 5,7 milhões.

Quando se soube, caiu que nem bomba. O moço foi espostejado sem piedade antes sequer de ter visto as massas e as mais-valias, estimadas em 470% em apenas três anos de investimento. Centraram-se então as críticas no ganhuço havido, mas também, ou primordialmente, no procedimento, gentrificador e despejista, e sobretudo, acima de tudo, na contradição mais do que óbvia, escandalosa e gritante entre aquela prática e o seu verbo hipócrita. Defendeu-se o rapaz como pôde e não pôde, obtemperando, entre o mais, que a exigência feita para que se demitisse não passava de uma vil tentativa para "intoxicar a opinião pública", argumento também esgrimido pelas lideranças do Bloco, com a excepção honrosa de Luís Fazenda, que, avisada e atempadamente, logo disse que aquele incidente especulativo-imobiliário ia contra os princípios bloquistas e, em consequência, que o partido deveria "tirar conclusões" do mesmo.

Aqui bateu o ponto, muito mais do que na compra e na venda de um prédio bonito numa zona histórica (até porque, já dizia outro Ricardo, o Nixon, "ganhar dinheiro é bom"). Ao tentar agarrar o Robles contra tudo e todos, muito para lá do que mandava o bom-senso e até o bom-gosto, a direcção do Bloco acabou por envolver-se, e ao seu partido, naquilo que era, e deveria ser, uma questão puramente individual e privada, passível de sanação expedita através de uma demissão que, mais cedo ou mais tarde, sempre teria de acontecer. Tal qual como agora Costa com o Galamba infausto, optaram Catarina e o par de Mortáguas pela paradinha negacionista, pelo banho-maria, pelo arrastão, deixando o rapaz a agonizar na via pública longos dias, prostrado e exangue. Quando se demitiu, já era cadáver, um corpo política e moralmente morto.

Como sucede a todos quantos pecaram, venial ou mortalmente, o engenheiro Ricardo Robles percorre hoje a pedregosa via crucis da reinserção social, procurando reintegrar-se na polis como pode, ou o deixam, na senda de uma reabilitação que, não sendo já imobiliária nem habitacional, será sobretudo cívica e moral, quiçá mesmo um bocadinho política, quem sabe? Um ano depois da hecatombe, o Diário de Notícias registava que tinha aparecido discretamente no Teatro Thalia, onde o BE estava reunido na noite eleitoral das europeias, em 26 de Maio de 2019, e, pouco depois, surgiu numa homenagem a João Semedo, além de continuar bastante activo nas redes do Face e do Instagrã ("O discreto ano de Robles depois de a casa vir abaixo", DN, de 27/7/2019).

Desconhece-se se terá fibra de lutador, alma de sempre-em-pé e se aquela carinha laroca não esconderá, afinal, muito sonsa, um vulcão fumegante e nunca extinto, como sucede aos imortais Santana e Isaltino, entre outros zombies desta República. Que nunca lhe falte a esperança, pois, caso não der a política, tem sempre lugar na RE/MAX.

Prova de vida (6) faz parte de uma série de perfis de verão.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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